Na tradição das navegações, os diários de bordo servem para registrar informações importantes sobre a travessia, como o avistamento de uma ilha ou alguma intempérie que tornou mais penosa a viagem em alto-mar. No livro Nós: O Atlântico em Solitário, recém-lançado pela Companhia das Letras (224 páginas, R$ 69,90), a paisagem principal é o mundo interno de Tamara Klink, que faz da primeira vez em que atravessou o segundo maior oceano do mundo um exercício de controle emocional para conseguir viajar por três meses em um barco precário completamente sozinha.
Habituada aos diários de bordo desde a infância, quando fazia viagens de barco com o pai, o navegador Amy Klink, a mãe e as irmãs, Tamara encontrou na escrita uma âncora, uma garantia de que não afundará no redemoinho de pensamentos vociferando que não conseguirá chegar a seu destino. Não só alcançou o título de brasileira mais jovem a cruzar o Atlântico em solitário, feito conquistado em 2021, aos 24 anos, como, ao atracar em terra firme, sentou para preparar seu terceiro livro.
Nós começou a chegar às livrarias em julho passado, quando ela já havia partido para a mais nova aventura: atravessar o Círculo Polar Ártico e desbravar suas águas congelantes. O objetivo foi conquistado há duas semanas, fazendo dela a primeira mulher brasileira e mais jovem navegadora do Brasil a navegar pelo Ártico sozinha. Foi em Disko Bay, na costa da Groenlândia, assistindo a uma aurora boreal, que concedeu entrevista a GZH por telefone.
— Quando passo dias em alto-mar, sem ver outra pessoa, sem ouvir outra voz, sem nenhum retorno sobre o que eu digo ou sobre o que sinto, a escrita me ajuda a me manter viva e sã. Me ajuda a não enlouquecer quando estou diante de uma situação difícil. E acontece muitas vezes de eu entrar em um ciclo de pensamentos negativos. Fui preparada psicologicamente para lidar com isso, aprendendo a reconhecer esses pensamentos, mas, durante uma navegação, quando se dorme pouco e se sente exaustão, medo e pressão...
Narrado em primeira pessoa como costumam ser os diários, Nós é um relato de uma quase inexperiente comandante que vai se tornando mais sábia à medida que vence os desafios. Em 2020, Tamara fez a primeira grande aventura sozinha, viajando entre a Noruega e a França e completando as primeiras mil milhas de sua bagagem de navegadora. A experiência foi retratada em Mil Milhas (2021), lançado pela editora Peirópolis, que também publicou seu livro de poemas Um Mundo em Poucas Linhas (2021).
Testemunha de viagens ambiciosas como as do próprio Amyr Klink, que em 1984 se tornou a primeira pessoa a cruzar o Atlântico em um barco a remo, Tamara quis mais. Em agosto de 2021, sem avisar pai e mãe, partiu de Lorient, na França, país onde recém havia se formado em Arquitetura Naval, para chegar em novembro daquele ano ao Recife, na costa brasileira, onde sua família a esperava um tanto contrariada com o tamanho do barco de oito metros batizado de Sardinha. Retornava para casa com mais 4 mil milhas de superação.
Mas enfrentou dias de solidão completa em alto-mar, alimentando-se de mingau, conservas e frutas ressecadas, segurando peças do barco que se soltavam conforme as ondas ficavam mais difíceis de contornar ou a chuva apertava e aguentando o próprio odor resultante da falta de chuveiro. No livro, raramente se regozija de suportar condições hostis. Pelo contrário. Mostra-se quase sempre insegura, ainda que fazendo o que deve ser feito; fragilizada, ainda que sem perder a direção. Faz questão de expor a própria vulnerabilidade como forma de desconstruir a figura heroica que se tem de um navegador.
— Tradicionalmente, os diários de bordo eram escritos por homens, e tinham o caráter de legitimar a capacidade daquele navegador em ser o chefe das expedições em alto-mar. Já na literatura de viagem escrita por mulheres, como elas raramente eram patrocinadas por alguém ou ninguém esperava muito delas, há uma permissão para serem mais vulneráveis, para mostrarem mais as suas falhas, falar de coisas ordinárias, sem ficar o tempo todo reforçando alguma idealização.
Também não esconde o ressentimento inicial com o pai por ele não ter contribuído financeiramente com sua primeira grande viagem e nem mesmo ter dado orientações sobre navegação. Em alto-mar, navegando com o próprio barco e descobrindo sozinha como ser uma comandante, viu que a indiferença paterna era, na verdade, um impulso à própria autonomia.
— Muitas mulheres e homens que lerão o livro talvez possam sentir culpa por deixar a mãe e partir sozinhos para morar em outro país, ou por nem sempre concordar com o que a mãe diz. Ou, talvez, sintam que para seguirem seu próprio caminho precisam se proteger dos medos dos pais. Busco ser honesta com os leitores sobre o que vivi. É na verdade que nós nos encontramos e nos identificamos.
O curioso é o título do livro apelar para o plural, quando Tamara faz tudo por conta própria, em sua única companhia. É porque, quando fala de si, quer inspirar os outros.
— Não faço questão de ser heroína. Escrever sobre o que vivi não me expõe. No máximo, ajudará as pessoas a construírem outras narrativas.