Em tempos de pandemia, os livros e os filmes viraram nossas boias salva-vidas (pra quem pode ficar em casa, eu sei). Felizmente, e com certo constrangimento, admito que não estou sofrendo como boa parte da população. Isolada, escrevo, escrevo, escrevo e, nas horas vagas, leio biografias e assisto a documentários. Tenho observado a vida alheia através de um olhar microscópico e curioso.
Sou voyeur confessa de emoções clandestinas e histórias íntimas vivenciadas entre quatro paredes, mas esta fixação atual talvez tenha um motivo a mais: andamos tão afastados uns dos outros que, não podendo abraçar, conversar e colocar nossos afetos no colo, acabamos nos contentando em espiar pelo buraco da fechadura de desconhecidos. Será? De qualquer forma, quis dividir com você o que venho consumindo.
Documentário já foi considerado um troço chato: hoje conquistam cinéfilos de todas as idades. De março para cá, assisti alguns trabalhos geniais envolvendo músicos consagrados (recomendo os de Quincy Jones, Michael Hutchence, Miles Davis, Nina Simone e Keith Richards, além da turnê Rolling Thunder Revue, de Bob Dylan, filmada por Scorsese), mas fiquei especialmente tocada com The Center Will Not Hold, sobre a vida da jornalista e escritora Joan Didion, que ficou conhecida no Brasil quando lançou, em 2005, o livro O Ano do Pensamento Mágico, em que narra seu luto após a morte repentina do marido. Não evite, temendo uma produção baixo astral: seria um argumento minúsculo e não se justifica aqui. Baixo astral é a vida sem poesia. Comova-se com um texto potente, lindas imagens e depoimentos sensíveis da própria Didion, hoje com 85 anos, frágil, esquálida, um fiapo de mulher, mas internamente (e eternamente) gigante.
Sou fã de biografias, desde que bem escritas: nada adianta o biografado ter vivido dias e noites de loucuras se o biógrafo é maçante
Biografias literárias, vamos a elas. Sou fã, desde que bem escritas: nada adianta o biografado ter vivido dias e noites de loucuras se o biógrafo é maçante. Não é o caso de Benjamin Moser, que se destacou no Brasil com seu Clarice. Não devia, mas vou polemizar: por mais que eu caia de joelhos diante da obra espetacular de Clarice Lispector, incluindo suas cartas aos amigos, não tenho paciência para seu cotidiano neurótico, achei a personagem sacal e assumo os riscos desta minha opinião controversa. Mil vezes a biografia de Susan Sontag, do mesmo Benjamin Moser – uma mulher instigante, contraditória e que gerou um livro vivo, filosófico, que nos dá um belo panorama do que houve de mais significativo na arte e na cultura do Século 20. Benjamin Moser não é econômico, suas biografias têm mais de 600 páginas. Se o leitor não tem fôlego para tanto, recomendo a autobiografia da escritora Maya Angelou, Eu Sei Porque o Pássaro Canta na Gaiola, um relato emocionante da cultura afro-americana e da infância da autora, e A Vida Descalço, de Alan Pauls, que também traz relatos de infância nas praias argentinas e uruguaias, incluindo uma passagem por Copacabana nos áureos tempos. É uma obra-prima em capa dura, edição da Cosac Naify que, com sorte, ainda pode ser adquirida em algum sebo físico ou virtual. Finalizo com uma joia de Rosa Montero, A Ridícula Ideia de Nunca Mais Te Ver, em que ela cruza a biografia da Nobel de Física e Química Marie Curie com a dela própria, numa narrativa que permeia o luto (de novo), mas com um resultado expandido e grandioso: o livro é repleto de memórias, plenitude, beleza, liberdade. Um manual de vida bem pensada, bem vivida e bem contada.
2020 é o ano em que se tornou perigoso descer pelo elevador com uma vizinha sem máscara, pegar carona com um primo que nunca lava as mãos e se encontrar com os amigos num bar, então, na ausência das saudosas conversas fiadas, mergulhe nas bios e nos docs que descortinam trajetórias ricas, pulsantes e que nos dão vontade de tornar nossas vidas igualmente interessantes e dignas de registro – se não para a posteridade, para nós mesmos, secreta e intimamente.