Mystify, o documentário sobre Michael Hutchence, vocalista da banda australiana INXS, não é apenas um retrato sobre as delícias e as dores da vida de popstar.
Sim, Michael se alimentava da vibração do público, mas, como revelam as fartas imagens de bastidores e de arquivo reunidas pelo diretor Richard Lowenstein, dizia que aquelas duas horas de show eram o que faziam valer seu dia – o resto eram 22 horas de nada e de angústia. Sim, Michael namorou mulheres lindas, mas a rotina de turnês impunha um longo afastamento. Sim, Michael chegou lá (com o disco Kick, de 1987, o INXS emplacou quatro músicas no top 10 dos Estados Unidos: New Sensation, Never Tear Us Apart, Devil Inside e Need You Tonight), mas aquela máxima não seria máxima se não fosse verdadeira: quanto maior a altura, maior o tombo (como deve ter machucado aquela deselegância típica de Noel Gallagher, do Oasis, no Brit Awards de 1996: "Aqueles que já foram não deveriam entregar prêmios para os que vão ser").
Lançado recentemente na Netflix, Mystify – vejam a coincidência sinistra – também mostra uma dimensão trágica para um dos sintomas da covid-19: a perda do olfato e do paladar. Michael, que era fascinado pelo romance O Perfume (1985) do alemão Patrick Süskind, de repente se viu privado de todos os perfumes: seja o que emanava do pescoço das mulheres, seja o que emanaria da cabecinha de um bebê. O prazer da comida acabou – tudo o que restou foi sentir a cremosidade ou a consistência de um alimento. A agressão por um taxista na Dinamarca, em 1992, provocou danos neurológicos que o cantor escondeu de quase todos – só vieram à tona na sua autópsia, cinco anos depois. Para um hedonista como Michael (sua banda, lembre-se, se chamava Em Excesso), diz uma médica entrevistada por Richard Lowenstein, o efeito foi devastador: o cheiro é intrínseco à sensualidade. Ali, naquela rua dinamarquesa, sua vida tomou o rumo que culminaria em um quarto de hotel australiano.
De repente, o refrão de um dos grandes sucessos do INXS, Disappear, gravado apenas dois anos antes do fatídico incidente, ganhava novo sentido. Poderia ser para uma mulher, poderia ser para as drogas, mas também poderia ser para a morte que Michael cantava "You're so fine / Lose my mind / And the world seems to disappear / All the problems / All the fears / And the world seems to disappear".
Antes de morrer, com apenas 37 anos, Michael Hutchence amou muito. Suas ex-namoradas, seus colegas de INXS, amigos e familiares contam que ele tinha a capacidade de, com o olhar, fazer a outra pessoa se sentir a única em uma sala cheia. Em um tempo quase pré-histórico se comparado aos recursos tecnológicos de que dispomos hoje, mandava pilhas de faxes do hotel onde estava, à espera ou na volta de um show, para o hotel onde Kylie Minogue estava, à espera ou na volta de um show.
Michael amava, como dizem os entrevistados e como mostram os vídeos caseiros que constituem a base do documentário, mas transparece uma grave lacuna em seu amor próprio. Mystify parece exemplificar aquilo que psicanalistas e pediatras falam sobre como a infância impacta a vida adulta. Faltou afeto para Michael. Seus pais estavam sempre trabalhando, viajando, festejando. Foi a irmã mais velha do futuro artista, Tina, quem cuidava dele quando era bebê. É possível conectar essa carência à afeição que, bem mais tarde, Michael desenvolveu pelos filhos pequenos da apresentadora de TV inglesa Paula Yates, com quem teve um romance turbulento (começou quando ela ainda era casada com o roqueiro Bob Geldof) e sua única filha, Tiger Lily, que tinha somente 16 meses de vida quando o pai se matou e que, aos quatro anos, encontrou a mãe morta, vítima de uma overdose de heroína.
Quando Michael tinha 14 anos e seu mano caçula, Rhett, 12, ele passou por um episódio traumático: a mãe se separou do pai e resolveu levar apenas o filho mais velho com ela para os Estados Unidos. Rhett ficou chorando no aeroporto. Martha Troup, empresária pessoal do cantor, disse que aquilo o despedaçou por dentro (e também atingiu violentamente o irmão, que passou a usar drogas, às vezes introduzidas pela babá!), fazendo-o sentir-se culpado e não merecedor do sucesso. Bono, do U2, amigo de Hutchence, lamenta-se no documentário por nunca ter conseguido convencer o frontman do INXS sobre o talento de sua voz.
Em janeiro de 2001, pouco mais de três anos depois da morte de Michael Hutchence, o U2 lançou a canção Stuck in a Moment you Can't Get Out of (Você Está Preso a um Momento do qual Não Consegue Sair), composta por Bono como uma espécie de carta para demover o amigo da ideia de suicídio:
"E se a noite se exceder?
E se o dia não durar?
E se nesta passagem pedregosa
teu caminho vacilar?
É só um momento,
este tempo passará."