Para abordar os anos de ditadura militar de seu país, o argentino Alan Pauls, 55 anos, resolveu não falar em armas, generais e intrigas políticas. Ao invés disso, usou lágrimas, penteados e moedas. Foi pelo viés da vida cotidiana que o autor de O Passado, adaptado para o cinema por Hector Babenco em 2007, retrata a Argentina dos anos 1970 nos romances História do Pranto, História do Cabelo e História do Dinheiro. O terceiro volume desse tríptico acaba de chegar ao Brasil. O livro traz personagens sem nome em uma narrativa repleta de vaivéns, às vezes desnecessariamente truncada, em que um garoto cresce em meio a adultos com relação obsessiva com o dinheiro - um pai jogador compulsivo e uma mãe que se dedica a aumentar uma casa de modo desmedido. Por e-mail, o autor falou com Zero Hora sobre sua obra:
História do Dinheiro encerra o tríptico com volumes sobre o pranto e o cabelo. Como comparar esses elementos?O que o dinheiro compartilha com as lágrimas e o cabelo é algo muito simples: pode-se perdê-lo. Melhor dizendo: tende sempre a ser perdido. No meu romance, a lógica da economia não é a da acumulação, e sim a da evaporação, do gasto, do desperdício. E, como está sempre ameaçado pela perda, o dinheiro - como as lágrimas e o cabelo - pode ser falsificado. Tudo o que se perde deve ter um substituto, uma prótese capaz de entrar no seu lugar. Dizemos "lágrimas de crocodilo" para descrever um pranto falso, assim como há perucas e também notas falsas. A história das coisas falsas é o lado B da história das coisas mais valiosas.
No livro, o dinheiro sempre aparece de modo muito explícito, são notas, moedas, pastas...
Queria escrever um livro no qual o dinheiro tivesse a mesma participação insistente e monotemática que as cenas de sexo têm nos filmes pornô. Só que, ao invés de "cenas de sexo", teria que haver "cenas de dinheiro". Pagar, emprestar, gastar, perder, comprar... Se pensarmos bem, o dinheiro é a estrela onipresente de nossa vida cotidiana.
Assim, este acaba sendo um trabalho sobre obsessões.
Para mim, a literatura é um laboratório perfeito para tramar sobre anomalias. A obsessão é um bom ponto de partida porque quem tem uma obsessão vê o mundo - o mundo inteiro - através dela. Acredita que sua obsessão é a chave do sentido do mundo. É um abuso de interpretação, certamente. Mas nesse erro há por vezes uma paixão, um desejo frenético e um entusiasmo muito comoventes, que são os mesmos que sentimos quando - estúpidos mortais comuns - acreditamos descobrir o que significa o amor, ou a política, ou a liberdade, ou o que quer que seja.
O livro é ambientado na década de 1970. Como você compara este cenário com o atual?
O que não mudou, com certeza, é a lógica completamente insensata da economia. Na Argentina, sem dúvida, onde o dinheiro segue sendo uma obsessão demencial, mas também no resto do mundo "civilizado" (Espanha, Grécia etc.). Não é no mundo do capital que vamos encontrar garantias.
Leia a seguir trecho da obra:
"Não completou quinze anos quando vê pessoalmente seu primeiro morto. Fica um pouco surpreso de que esse homem, amigo íntimo da família do marido de sua mãe, agora, encolhido pelas paredes muito estreitas do caixão, ainda lhe pareça tão antipático quanto quando era vivo. Ele o vê em seu terno, vê seu rosto rejuvenescido pela higiene fúnebre, maquiado, a pele um pouco amarelada, com um brilho que parece de cera, mas impecável, e sente novamente a mesma antipatia raivosa que o assalta toda vez que deparou com ele. Aliás, sempre foi assim, desde o dia em que o conhece, oito anos antes, num verão em Mar del Plata, pouco antes do almoço.
Não sopra um pingo de vento, as cigarras aprontam outra ofensiva ensurdecedora. Fugindo do calor, do calor e do tédio, ele anda à deriva pelo casarão do início do século xx onde não consegue encontrar seu lugar, pouco importam os sorrisos com que é recebido pelos donos da casa assim que pisa nela pela primeira vez, nem o quarto exclusivo que lhe destinam no primeiro andar, nem a insistência com que sua mãe lhe garante que, mesmo recém-chegado, ele tem tanto direito ao casarão e a tudo que há nele _ incluindo a garagem com as bicicletas, as pranchas de surfe e as de isopor, incluindo também o jardim com as tílias, o alpendre, os balanços de ferro e aqueles canteiros com hortênsias que o sol chamusca e descolore até que as pétalas pareçam de papel _ quanto os outros, entendendo por outros toda a legião difusa, mas inexplicavelmente crescente, que ele, com um desconcerto que os anos todos em que vem escutando a expressão não conseguiram dissipar, ouve chamar de sua família recomposta, toda essa tropa de primos, tias e avós postiços que brotaram de um dia para o outro como verrugas, quase sempre sem lhe dar tempo para o básico, decorar seus nomes, por exemplo, e conseguir associá-los aos rostos correspondentes. O calvário de quem se vê forçado a se mover porque não se encaixa: todos os passos que dá são em falso, cada decisão um erro. Viver é se arrepender.
Numa escala de sua perambulação, aterrissa no térreo e o vê _ ou melhor, o surpreende _ o morto, claro, quem mais seria? _ esgueirando-se pela sala de jantar como se andasse nas pontas dos pés, em atitude suspeita. Não tem a agilidade inquietante de um ladrão. Se há uma coisa que ele não representa, rubicundo como é, de uma afetação quase feminina, com essa pele sempre salpicada de manchas vermelhas, é uma ameaça. Tem um jeito sutil de se mover, a delicadeza de um mímico ou de um bailarino, e dá uns saltos mudos, tão inofensivos quanto a missão que o levou até a sala de jantar antes que a sineta anuncie oficialmente a hora do almoço: antecipar-se ao resto da família para saquear um por um, com as bicadas de seus dedos manicurados, metódicos, os pratinhos onde acabam de servir os crostines que ele mesmo resolveu comprar essa manhã, uma marca de nome vagamente estrangeiro cujas qualidades, ao que parece, está promovendo há uma semana sem que lhe deem atenção.
Como todo mundo, ele acreditou que a morte lave essa velha apreensão. Pelo menos isso, se não conseguir apagá-la. De maneira que se aproxima do caixão, a única coisa, além da mulher do morto _ a qual, aliás, já não vê há um bom tempo _, que o atrai nesse apartamento sufocante para onde sua mãe o levou sem dizer uma palavra assim que ele volta da escola. Avança com o queixo fincado no peito, com o mesmo ar sério e ensimesmado que entristece com estranha unanimidade o rosto dos adultos e que em menos de dez minutos, só de dar uma olhada, já é capaz de plagiar com perfeição, encorajado, além do mais, pela formalidade do uniforme do colégio com o qual sua mãe o obrigou a ficar, a única coisa que seu guarda-roupa oferecia à altura da situação. Mas quando chega ao lado do caixão, com a esperança de que ver o morto ao vivo _ como um dia brincou com os colegas de escola com quem divide a mesma inexperiência em assuntos de velório _ relegue a velha hostilidade para o subsolo onde murcham suas intolerâncias de criança, as vozes ao seu redor se entrelaçam num rumor confuso, o som ambiente se apaga e ele, incrédulo, descobre que o único som que ouve, que volta a ouvir intacto, conservado em estado de máxima pureza, é uma coisa apenas: o crepitar insuportável dos crostines dentro da boca do morto. São, de fato, dois sons alternados: o estalido que os crostines fazem ao serem triturados pelos dentes, nítido mas opaco, abafado pelo decoro de uma boca educada para se abrir o mínimo possível enquanto mastiga, e o estalo vivaz, regular, os lategaços ínfimos que ressoam no instante da trituração, quando os lábios se deliciam prolongando por alguns segundos o prazer de saboreá-los. Mas não: não estão no ar nem em sua cabeça. Não são uma alucinação nem uma lembrança. Estão lá dentro, soam na própria boca do morto.
Quantas vezes volta a encontrá-lo ao longo dos anos seguintes: dez?, trinta vezes? No entanto, nada nele persiste tanto quanto esse crepitar repugnante. Vê o morto quase todo verão em Mar del Plata e nas situações mais diversas: em traje de banho, por exemplo, com a pele branquíssima, salpicada de pintas, queimada de sol, encaminhando-se para o mar com os pés abertos em V, como um pato, ou exibindosuas camisas cor de salmão num conversível italiano com o qual dizem que tentou a sorte no autódromo, ou jogando golfe e perdendo feio e deixando-se distrair _ apenas anota com o lapisinho em seu cartão as sete tacadas grotescas que lhe exigiu o par quatro que acaba de deixar para trás _ pela cócega que diz que uma costurazinha da luva que acabou cedendo faz em seu punho, a ponta ligeiramente achatada do tee que mete entre os dentes ou a fome que começou a sentir quando ainda não são nem dez da manhã, ninharias que comenta em voz alta, às vezes ao longo de buracos inteiros, como se fossem episódios de um drama funesto, com o único fim de desconcertar os adversários e assim, talvez, superar os números adversos de seu cartão. Topa com ele também em Buenos Aires, em sua própria casa, convidado para algum aniversário familiar, movendo-se com a presunção um pouco insolente desses amigos da família que se atribuem um lugar mais íntimo que os próprios parentes, ou assinando cheques numa confeitaria da rua Florida, num desses salões imensos, fora de moda, com poltronas capitonnéses e garçons de um profissionalismo carrancudo onde o marido de sua mãe, com o pretexto de familiarizá-lo com um modelo de vida adulta que sempre lhe será estranho, costuma almoçar e fechar acordos comerciais com colegas. Uma vez o vê sob o sol numa chácara da província de Buenos Aires, vestido com calça branca e botas de montaria e um copo longo na mão com uma bebida cor de ginja que bebe a sorvos curtos, quase aspirando-a, como se estivesse muito quente, enquanto um peão magérrimo, de boina, retirou-se para um lado e espera incomodado alguma coisa que não chega."
História do Dinheiro
de Alan Pauls
Romance, Cosac Naify, 192 páginas, R$ 49,90. Tradução de Josely Baptista.
Cotação: 3 de 5 estrelas.