A cozinha do chef Mamadou Sène, ou Fusion Cuisine como ele a chama, carrega a sua trajetória multicultural. Através da gastronomia, ele conheceu mais de 20 países e, de todos, escolheu o Brasil para morar. Mais especificamente, em Porto Alegre. Por aqui, construiu uma carreira de duas décadas como professor de Gastronomia. E, em homenagem ao Dia do Chef, comemorado no dia 20 de outubro, ele compartilhou conosco os principais ensinamentos que arrecadou durante estes anos à frente de equipes de cozinha.
O senegalês que abraçou o mundo tornou a cozinha o seu lar. O passaporte cheio nunca foi desculpa para enfraquecer os laços com seu país natal. "Eu sou senegalês e faço questão de manter as ligações com o meu país", afirma o chef. De temporada em temporada nas cozinhas internacionais, Sène arrecadou as influências de cada lugar por onde passou, o que contribuiu para a sua construção como chef.
Desde o começo de sua história, Sène se destacou por duas qualidades: a curiosidade e a humildade para aprender. Hoje, com 40 anos de carreira, compartilha com seus alunos as virtudes que o trouxeram para o Brasil e fizeram dele um dos mais respeitados chefs no Estado.
O início da história do chef Sène, no entanto, começou longe das panelas. Foi sua curiosidade que o levou, num primeiro momento, a estudar História na Université Cheikh Anta Diop de Dakar, no Senegal. Sempre teve interesse em conhecer a história de seu país, porém, no último ano, decidiu trocar para o curso de Hotelaria e Turismo.
Trabalhou como guia turístico em sua cidade, mas se encontrou mesmo na gastronomia. O curso de cozinha e hotelaria da École Hotelière de Dakar abriu as portas para o mundo, quando recebeu uma bolsa de estudos em Chambéry, na França. De volta para sua cidade-natal, Mamadou tornou-se chef da rede de hotéis Club Mediterranée, onde pode conhecer países como Marrocos, Emirados Árabes, Itália e Taiti. Seu primeiro contato com o Brasil, por outro lado, começou no Senegal.
Responsável pelo jantar que receberia líderes da Embaixada Brasileira em Dakar, no dia 07 de setembro de 1978, Mamadou recebeu o desafio de preparar um clássico da culinária brasileira: a feijoada. Foi preciso treinar durante um mês, para se adaptar ao feijão preto e aos ingredientes tupiniquins, como o charque, até chegar ao resultado ideal.
Na época, o embaixador João Cabral de Melo Neto, junto com sua esposa, fizeram questão de conhecer o chef que representou fielmente o prato tradicional. Mamadou não contava que estava prestes a conhecer um dos grandes nomes da cultura e da poesia no Brasil, o autor de Morte e Vida Severina.
Entre elogios e conversas, o casal contou ao chef a importância da influência africana na gastronomia brasileira. E, foi então, que sua curiosidade o levou até o Brasil. A convite do diplomata, Mamadou ganhou uma bolsa de estudos em Águas de São Pedro, em São Paulo, para aprender sobre a culinária brasileira.
Um ano não foi o suficiente. Mamadou decidiu estender sua estada no Brasil, para se aprofundar nas culinárias locais que tinham ligação com a cultura africana. Encontrou em outro continente pratos típicos africanos que lembravam seu lar. “O acarajé de lá se prepara da mesma forma na Bahia”, explica Sène, apontando que a única diferença é o óleo de amêndoa usado para fritar o bolo de feijão, ao invés de dendê.
Desde então, trabalhou em hotéis e restaurantes em cidades de Norte a Sul do país. Veio para Porto Alegre, em 1983, para comandar a cozinha da Associação dos Profissionais Liberais Universitários do Brasil, a Aplub .
“Quando eu cheguei em Porto Alegre, eu tinha me dado o prazo de um mês para me adaptar, e em uma semana eu já havia me adaptado à cidade”, responde com prazer, quando perguntado sobre o que mais gosta da cultura gaúcha. Pareceu óbvio que “a alegria, o calor humano e o povo festeiro” o cativaram desde o primeiro dia.
Em 2003, iniciou outro grande desafio em sua carreira: formar novos cozinheiros, na Faculdade de Gastronomia do Senac. Mais de mil alunos já passaram por sua sala de aula. Todos receberam a principal lição do chef: para se tornar um bom líder, é preciso, antes de tudo, ser um bom cozinheiro. A humildade para aprender e trabalhar em equipe forjaram o chef Mamadou Sène que, hoje, compartilha destas qualidades com seus aprendizes.
Quando e como começou sua história com a cozinha?
Minha história com a cozinha começou a partir dos anos de 1970, mas eu sempre gostei de cozinhar. Quando eu chegava em casa, depois da escola, minha direção era a cozinha. Após a minha formação, comecei a trabalhar como guia turístico, até decidir entrar na cozinha de uma vez. Então, fui estudar na França e lá eu fiquei 18 meses. Depois voltei para Dakar, onde tive várias oportunidades de crescimento. Foi através de uma rede de hotéis francesa, onde eu trabalhei como cozinheiro, que pude conhecer mais de 20 países, ficando uma temporada de seis meses em cada.
Durante todos esses anos trabalhando em cozinhas de diversos países, com culturas distintas, qual foi a experiência que mais te marcou?
Quando estive na Bahia e conheci a Mãe Menininha do Gantois. Quando eu a vi pela primeira vez, me lembrou minha avó. O mesmo sorriso e o mesmo tom de voz, bem pausada e firme. Minha avó era assim, a matriarca de toda a família. Tinha essa voz bem carinhosa e suave, mas, ao mesmo tempo, demonstrava firmeza e personalidade. Quando eu a vi, me sensibilizou e me cativou tanto que parecia que estava vendo minha avó paterna, como se eu tivesse transferido ela para o Brasil.
Com uma carreira de docente há muitos anos, qual é o principal ensinamento que tu passas aos teus alunos para se tornarem bons chefs?
O que eu falo sempre para eles é: procure ser um bom cozinheiro antes de ser chef. Hoje em dia, todo mundo é chef e ninguém é cozinheiro. Além disso, é preciso conhecimento e prática, claro. É muito importante dominar as bases e as técnicas fundamentais. Porém, tem que ter humildade suficiente para querer aprender e nunca achar que chegou no ponto. Além disso, também é preciso perseverança. Não foque nas dificuldades, mas tente reparar o que a profissão traz de realização.
Se tu pudesses preparar um jantar que representasse a culinária de todas as culturas que te influenciaram enquanto chef e professor, qual seria o cardápio?
Eu faria uma entrada que representaria a África, que seria um bolinho de siri com camarão, com molho apimentado e mix de folhas. Como prato principal, eu escolheria um prato francês, o boeuf bourguignon, porque é um prato da Borgonha, uma região rica gastronomicamente na França. Lá tem vinhos maravilhosos, champignon e de onde vem a famosa mostarda Dijon. O acompanhamento seria um purê de batata bem cremoso, que representaria a América do Sul, porque, como se sabe, a batata veio do Brasil e do Peru e depois foi levada para a Europa e a outros continentes. E, para sobremesa, um doce da culinária tailandesa, que é muito cativante. Seria à base de leite de coco. Sem falar das especiarias, gosto de pratos com variedades de especiarias - por isso que a minha cozinha é a Fusion Cuisine.
Em poucas palavras: um bom chef precisa…
Saber lidar com pessoas. Um chef lida com temperamento, com rivalidade e com sentimentos. O que é ser um líder? É saber delegar e mostrar como se deve fazer. Não basta saber cozinhar e dominar a cozinha, se não tiver humanidade e sensibilidade, não funciona. Um bom chef precisa saber compartilhar, cobrar na hora certa e abraçar, quando necessário.