A recepção de Gilberto Schwartsmann não poderia ser melhor. Ao abrir a porta de seu apartamento, no 12° andar de um edifício no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre, o médico oncologista leva a reportagem diretamente para uma sala com estantes abarrotadas de livros. Há ali obras raras, algumas primeiras edições, que integram uma coleção de 500 exemplares. Aos 67 anos e com a faceirice de um menino diante de um brinquedo novo, Schwartsmann exibe um exemplar de A Ilíada, de Homero, datado de 1715, e outro da primeira edição de Ulysses, de James Joyce, de 1922. Apaixonado por arte, ele recém foi nomeado presidente da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) pelo governador Eduardo Leite. Já esteve à frente da Fundação Bienal do Mercosul, da Associação Amigos do Theatro São Pedro e da Biblioteca Pública do Estado. Também é um mecenas, pessoa que incentiva financeiramente os artistas e projetos culturais. Nesta entrevista, revela planos para a Ospa e defende que as elites façam mais pela arte.
Quando o senhor começou a adquirir primeiras edições de livros?
Eu tinha uns 12 ou 13 anos quando minha professora de história no ginásio, a Giselda, disse: “Gilberto, já que você gosta de literatura, enfrenta agora A Divina Comédia, porque depois de velho fica difícil ler esse livro (clássico de Dante Alighieri)”. Ela falou para eu ir à Livraria do Globo, na Rua da Praia, e pedir uma edição bilíngue, em italiano e em português. Disse que eu tinha de ler antes em italiano para pegar a música dos versos. Cheguei lá e uma guria muito bonita me atendeu. Comprei o livro, mas ela me convenceu a ir até o sebo do pai dela, que ficava no fim da Rua da Praia, onde havia edições mais interessantes d’A Divina Comédia e até com preços melhores. Fui lá também e assim dei início à minha coleção do Dante Alighieri. Mas sou craque em leilões de livros. Participo até pela internet.
O senhor disse, ao nos receber, que colecionar livros é um hábito solitário. Por quê?
Porque não tem muita gente que gosta disso. Falo às vezes para uns conhecidos e eles não dão muita bola. Respiram fundo e só. Mas não me importo.
Quanto custa um livro raro?
Nem quero saber, porque não vou vender nunca. Quando eu morrer, vou deixar tudo para a Biblioteca Pública do Estado. Já falei para eles.
Fale um pouco sobre a exposição que o senhor vai inaugurar no Rio de janeiro em agosto.
Serão cerca de 250 volumes de obras raras e primeiras edições. Foi batizada de Biblioteca (In)Finita e ficará exposta na Academia Nacional de Medicina. Tem um conto do Jorge Luis Borges chamado A Biblioteca de Babel, em que ele descreve uma biblioteca infinita, em hexágonos, porque ele diz que o homem vai desaparecer e a história será contada através dos livros. Minha exposição será toda ambientada na Biblioteca de Babel de Borges.
Se tivesse de escolher apenas um livro para salvar, qual seria?
A Bíblia, ou A Ilíada, ou A Divina Comédia, ou tudo do Shakespeare.
Qual foi o primeiro livro que o fisgou?
A minha mãe, que faleceu com cem anos, sabia poesias de cor. Eu memorizei os poemas que minha mãe recitava. Quando me pego distraído, percebo que sei uma poesia inteira, só de ter ouvido a minha mãe. Depois comecei a ler o que toda criança lê: fábulas, Monteiro Lobato.
Já leu tudo o que tem aqui na sua biblioteca?
Não. É uma paixão, quase uma doença. Sei que jamais vou conseguir ler tudo o que tenho, mas se me aparece uma edição rara na frente, eu compro. Tenho tudo isso pelo prazer de manusear e saber que posso abrir o livro.
O ser humano de hoje é igual aos personagens que Shakespeare descreveu. Está cheio de gente igualzinha à Lady Macbeth, com sua cobiça, e com um temperamento cínico e dissimulado, como o de Iago. O que a arte dá é a possibilidade de ter um pouco de abertura mental, de crítica, além da possibilidade de viajar sem sair do lugar. Porque a vida de um ser humano, cá para nós, é muito complicada, né? A arte permite que a gente saia da dureza da vida.
De que forma a arte contribui no dia a dia de um médico?
A arte é importante para qualquer pessoa. Mas não é redentora. Não imagino que uma pessoa vai aprender a ser melhor por causa da arte. Se não, não teria o bombardeio da Ucrânia logo depois de uma pandemia que matou milhões de pessoas. O ser humano de hoje é igual aos personagens que Shakespeare descreveu. Está cheio de gente igualzinha à Lady Macbeth, com sua cobiça, e com um temperamento cínico e dissimulado, como o de Iago. O que a arte dá é a possibilidade de ter um pouco de abertura mental, de crítica, além da possibilidade de viajar sem sair do lugar. Porque a vida de um ser humano, cá para nós, é muito complicada, né? A arte permite que a gente saia da dureza da vida.
A exposição Caminhos de Proust, sobre o centenário da morte de Marcel Proust, na Biblioteca Pública do Estado, realizada no final do ano passado, foi um sucesso. Como surgiu essa ideia?
Eu adoro Proust, sou proustiano de carteirinha. A literatura do Proust é das mais sofisticadas que conheço. Como eu era presidente da Associação Amigos da Biblioteca Pública, achei que seria legal uma exposição importante do ponto de vista cultural. Gente do Brasil inteiro, da América do Sul e até da Europa veio visitar. A biblioteca praticamente renasceu. Foi feita via Lei de Incentivo à Cultura do Estado. Graças a Deus existem essas leis. Tem a Lei Rouanet e aqui, a LIC-RS. Essas leis permitem que as empresas, em vez de pagarem os tributos para o governo, destinem um pouco para projetos culturais.
O que fazer para que esse tipo de evento não seja algo pontual e que os espaços culturais do Rio Grande do Sul sejam mais frequentados?
Desenvolvendo a longo prazo a cultura. Não é um processo do dia para a noite. Uma criança não vai ficar deslumbrada com a arte se não estiver acostumada com arte, né? Vou contar uma história. Eu estava presidindo a Bienal em uma edição e parte da exposição era no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs). Um dia, um colégio de Guaíba foi visitar. Eram crianças muito humildes, de baixa renda. Cheguei para eles e perguntei se tinham gostado da Bienal. Eles responderam que sim. Perguntei do que eles tinham gostado mais, e um pequenininho me disse: “Tio, aquela fotografia daquele negro olhando me deu uma coisa aqui no estômago”. Isso, sozinho, já vale uma Bienal. Essa criança foi impactada por uma obra. Isso é arte.
(Podemos deixar a arte mais acessível) Fazendo cada vez mais exposições, buscando apoio, fazendo a Ospa realizar mais concertos. Quanto mais qualidade oferecermos, mais as pessoas se aproximarão da arte, e assim teremos uma população mais civilizada. Não dá para querer que as pessoas tenham comportamento civilizado se não têm acesso às coisas.
Como tornar esse tipo de arte mais acessível para a população mais carente?
Fazendo cada vez mais exposições, buscando apoio, fazendo a Ospa realizar mais concertos. Quanto mais qualidade oferecermos, mais as pessoas se aproximarão da arte, e assim teremos uma população mais civilizada. Não dá para querer que as pessoas tenham comportamento civilizado se não têm acesso às coisas. E nossas elites econômicas têm certa perversidade. A maioria cresceu economicamente, mas não desenvolveu a parte cultural. São pessoas que raramente frequentam espetáculos em Porto Alegre, raramente prestigiam as coisas daqui, mas viajam para o Exterior e frequentam eventos que são uma porcaria.
A classe médica também é considerada uma elite no Brasil e parte dela costuma ser alvo de críticas por causa disso.
Para a minha surpresa, durante a pandemia, houve um florescer de médicos questionando a vacina. Pensei que isso tivesse sido superado. O Brasil é campeão em vacinação. Agora, temos o Instituto Unimed, que é uma exceção no Brasil, um dos que mais investem em cultura e arte. Médicos são seres humanos como qualquer outro. Mas vou repetir: temos uma elite muito pequena e muito empoderada. O Brasil é uma sociedade de base escravocrata. Várias pessoas que eram consideradas liberais tinham escravos. Ainda temos muitos problemas de concentração de renda. Temos uma elite muito pouco preocupada com o futuro deste país. Temos, paradoxalmente, algumas famílias ajudando o país. Por meio das leis de incentivo, é verdade, mas ajudam. Agora, há famílias com renda muito alta que não dão a mínima para a arte e a cultura local, não prestigiam, e, quando vão para qualquer evento fora do Brasil, ficam deslumbradas. Às vezes nem entenderam o que viram, porque no dia a dia não vivem a arte.
O senhor falou de médicos negacionistas. Como encarou esse movimento?
Foi um pesadelo. Me lembro de quase ser atacado fisicamente por dizer que a cloroquina era uma picaretagem, que não havia estudos científicos sustentando esse remédio. Foram pessoas que aprenderam sobre a importância da evidência científica. E isso não foi só no Brasil. Aconteceu também nos Estados Unidos. É do ser humano. A humanidade funciona com avanços e retrocessos.
O que o senhor pretende fazer pela Ospa?
Estou com a possibilidade de lidar com um diamante. A Ospa é uma coisa belíssima, emocionante. Tem um orquestra maravilhosa, uma orquestra jovem bárbara, além do Coro Sinfônico. O programa da Ospa é impressionante. Mas os músicos da orquestra recebem um terço do que os músicos da Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) recebem. E, ainda assim, conseguem fazer espetáculos maravilhosos. A Ospa, desde que foi concebida, em 1950, atuou sem parar. Sempre teve gente, em qualquer momento, em qualquer crise, que cuidou da Ospa. A primeira coisa que fiz ao assumir a presidência foi abrir mão do meu salário. Não é demagogia, eu não preciso desse pagamento. Tem a Fundação Cultural Pablo Komlós, que procura tornar melhor a vida do aluno que estuda música na Ospa. Vamos dar cachê para todos os músicos da Orquestra Jovem quando fizerem os concertos, assim como cachê para o Coro Sinfônico. Isso não existia. Para uma família humilde, a música pode ser a maneira de ver o filho crescer. Então temos de ajudar essas pessoas. Vamos falar com o governador para ampliar o orçamento da Ospa, pois é o governo que mantém a Ospa. Ele é o governador da cultura. O músico precisa ser mais valorizado. A minha expectativa é de que o orçamento da Ospa seja duplicado.
O senhor já falou que o salário dos músicos da Ospa é baixo. Vai lutar para aumentá-lo?
Passou pelo Executivo agora o aumento do subsídio para manutenção dos instrumentos e das roupas dos músicos da Ospa, que era de R$ 1,2 mil por mês. Essa proposta já havia sido encaminhada no ano passado e ficou parada. Com a minha entrada na presidência, fizemos uma pressão, e a proposta foi aprovada também pela Assembleia (por unanimidade, no último dia 11). Nós temos de comemorar, porque o subsídio vai passar para R$ 2,8 mil. Serão R$ 1,6 mil a mais para um músico, que ganha muito pouco. Mas não será o projeto principal, porque tudo o que não é aumentado no salário a pessoa perde quando se aposenta. Vamos trabalhar para que o músico da Ospa tenha vontade de ficar na orquestra, de ficar no Rio Grande do Sul, vamos trabalhar para que ele se sinta respeitado e valorizado. Quero fazer com que o maestro Evandro (Matté) tenha recursos para realizar os sonhos que ele tem para a Ospa, como viagens e melhorias para os músicos. Se eu te disser que os jovens da Escola de Música da Ospa não ganham nem passagem, tu achas certo?
Imagina uma família pobre com um filho que gosta de música. A tendência de botar em um subemprego para aumentar a renda familiar é grande, né? Seria até mais vantajoso. Então, também temos que garantir melhores condições para os jovens da Escola de Música da Ospa, já que a maioria pertence a famílias de baixa renda.
Não ganham passagem para transitarem de casa até a Escola de Música da Ospa?
É, não ganham. Imagina uma família pobre com um filho que gosta de música. A tendência de botar em um subemprego para aumentar a renda familiar é grande, né? Seria até mais vantajoso. Então, também temos que garantir melhores condições para os jovens da Escola de Música da Ospa, já que a maioria pertence a famílias de baixa renda. Temos que fazer com que o orçamento da Ospa aumente. As empresas poderiam adotar alguns bolsistas, dando meio salário mínimo por mês.
Diferentemente da classe dos médicos, que em parte tem boa remuneração por seu trabalho, os artistas costumam ter mais dificuldades para encontrar estabilidade e ganhos melhores. Como mudar a visão da sociedade, que não enxerga o artista como um profissional que precisa ser valorizado?
Todas as profissões merecem ser valorizadas da melhor maneira possível. Agora, o médico perdeu poder no imaginário das pessoas. Em uma cidade pequena, quem eram os poderosos? O padre, o médico e o juiz. Agora não é mais assim. O médico nunca deixa de pagar suas contas. Já o músico de uma orquestra sinfônica tem uma realidade completamente diferente. Há músicos de orquestra que estudam todos os dias, durante anos e anos, e ganham R$ 5 mil por mês. Mas precisamos fazer ações que transformem isso em leis.
Há um antigo sonho de uma sede para a Ospa na beira do Guaíba. O senhor pretende investir nesse projeto?
Muitas pessoas que admiro falavam desse sonho de ter uma sede na beira do Guaíba. A área do Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, onde houve o início de obra em 2003, depois abandonada, ainda guarda as ferragens daquelas fundações. Nessas minhas primeiras semanas na presidência da orquestra, considero que a nossa atual sede, a Casa da Ospa, inaugurada em 2018 no Centro Administrativo do Estado, é belíssima, ampla, com uma sala de espetáculos ótima. E é uma localização segura. Talvez com investimentos mais modestos do que o necessário para uma nova construção teremos possibilidades de transformar nossa sede em algo de padrão internacional. Claro que não se estará olhando para o Guaíba, mas podemos usar nossa imaginação. Minha visão é de concentrar os esforços para tornar nossa orquestra a orquestra com o melhor programa artístico do país.
O plano Amigo Ospa é uma forma de a comunidade contribuir financeiramente com a orquestra. Como funciona?
Há várias maneiras. Se a pessoa quiser fazer um Pix para a Fundação Pablo Komlós, pode fazer. Também pode ser Amigo Ospa, que é mais fidelizado. Há várias instâncias, do mecenato às contribuições mais simples. Se tivéssemos 20 novos mecenas, cada um doando R$ 5 mil por ano, a gente faria chover. As empresas precisam olhar mais para as oportunidades de exercerem a cidadania. As empresas e pessoas físicas podem destinar parte dos tributos pagos para a Ospa.
O senhor é um mecenas, não é?
Claro que sou. Deus me deu tanto, por que não vou dar para os outros? Não dá para ser feliz sozinho. A gente tem que olhar para o entorno. Tem muita gente que faz coisas tão fúteis e que poderia ajudar a Ospa, mas não ajuda.