Marcia Cristina Bernardes Barbosa, 63 anos, assumiu, no início deste governo, o cargo de secretária de Políticas e Programas Estratégicos, uma das quatro secretarias do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). A professora e pesquisadora, formada e pós-graduada em Física, está cedida pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para que possa se dedicar à nova rotina em Brasília, onde passa a semana. Membro das academias Brasileira e Mundial e Ciências, Marcia escolheu muito cedo a bandeira do feminismo e batalha, em diversas frentes, pela representatividade das mulheres.
– Hoje a militância feminista é parte do que sou. Ninguém consegue separar.
A cientista conversou com GZH antes de uma palestra para estudantes da universidade, em março.
O que está na área de atuação da secretaria de Políticas e Programas Estratégicos?
Essa secretaria é cheia de redes de pesquisadores. Há uma rede que foi provocada, durante a pandemia, para fazer desenho de vacinas – há duas já na segunda fase e uma na primeira fase. Por que, ainda, a pandemia? Porque temos que entender as tecnologias e estar preparados para outra forma de pandemia. Já convoquei essa rede para começar outro estudo que tem a ver com a gripe aviária. Temos que nos preocupar com isso também. Aí eles se juntam, fazem um programa que vira um edital, e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) implementa. Quem ganha a visibilidade de quem age? O CNPq, que está ligado ao ministério. Nós não lançamos edital. Nós direcionamos o recurso para um pesquisador ou grupo usar ou para editais via CNPq. Há uma série de coisas na Amazônia, tanto de rastreamento da floresta como de educação e formação da população local. Muitos projetos têm apoio internacional. Vários institutos que estão na Amazônia são do ministério.
Você já disse que pretende aprofundar a atuação da secretaria em clima, meio ambiente e agricultura para dar respostas científicas a questões como a fome e as mudanças climáticas. De que forma isso pode acontecer?
Tem outra secretaria, de divulgação científica, que vai elaborar melhor a questão do combate à fome, mas não do ponto científico. Quero olhar melhor isso do ponto de vista científico. Temos uma secretaria só de ciências sociais que precisa receber mais projetos para a gente conseguir olhar como produzir melhor e com menos impacto de gás carbônico. Vamos estimular o contato com a Embrapa, com pesquisadores de alimentação, para termos uma agricultura menos poluente, que use menos agrotóxicos, que seja melhor. Isso tudo é ciência. Se a resposta for um desenvolvimento tecnológico, essa é a resposta que a gente vai dar, mas precisamos ter editais para fomentar essas redes e ampliar. Temos que ver como nos preparar para essa mudança que está acontecendo. Se vai ter seca no Rio Grande do Sul todo ano, o que temos que fazer? Como diz a Cristina Bonorino (imunologista, professora da UFCSPA e colunista de GZH), não é olhar para cima: temos que olhar para baixo, temos um aquífero aqui embaixo. Com a continuação das mudanças climáticas, vai chover mais no Estado, mas não será em março, como gostaríamos. Vai chover mais em outras épocas do ano. Como se preparar para isso? De que tipo de plantas mais resistentes precisamos? A solução é produzir mais e melhor, principalmente porque as mudanças climáticas vão gerar secas no Centro-Oeste e no Sudeste. Temos que nos preparar para o quase inevitável que já está acontecendo. As regiões já produtivas têm que ficar mais eficientes, com menos perda. Educar a população e buscar alternativas é função dos projetos que a secretaria pode estimular, e estou procurando coisas assim.
Você se diz fascinada pela água, seu tema de pesquisa há mais de 20 anos.
A água é completamente fascinante. Eu queria estudar coloide. Todos os cremes que comemos ou usamos são constituídos de coloides – moléculas grandes que se aglomeram com facilidade. Partículas grandes, no meio de pequenas, tendem a se aglomerar, e sempre quisemos entender como desaglomerá-las. Só que, nessas concepções, a água era coadjuvante, e os resultados não eram bons. Aí pensei que talvez a coadjuvante estivesse agindo. Comecei a descobrir um monte de doideira da água. O jeito que me aproximo de qualquer ciência é pelo fácil: modelos muito básicos, simples, mas que vão lá na essência da coisa. Achar a essência é difícil. Mais fácil é fazer uma fotografia toda detalhada do que fazer um rabisco e você identificar que esse rabisco tem um significado. Comecei a entrar nessa área e a achar significados, e as pessoas que estavam há muito tempo, obviamente, não gostam de quem chegou e quer sentar à janela, principalmente uma mulher latino-americana. Foi muito divertido brigar, até que aceitaram: “Ela tem coisas interessantes, vamos ouvir”. Comecei a trabalhar com a mobilidade da água, e descobrimos que a água fica rápida quando está com muita densidade. Isso ajuda a entender uma coisa que ela faz, que é ligação de hidrogênio. Eu conseguia manipular as propriedades para dar essa rapidez, e foi por isso que ganhei o Prêmio L’Oreal-Unesco, em 2013. Aí resolvi estudar a água em nanoconfinamento. É todo um mundo de coisas que fazemos com a água. Cada vez que mexo, aparece mais uma coisa louca. Agora estou brigando com a comunidade porque resolvemos fazer cone para captar água do ar. Eles enlouqueceram porque isso vai contra algumas coisas em que acreditavam, e eu fui lá furungar.
As pessoas acham que a ciência é só o laboratório e a torre de marfim, mas não. É um imenso relacionamento entre pessoas. É uma rede, é colaborativo, é muito internacional. A gente conversa com pessoas de culturas e jeitos de ver o mundo muito distintos porque temos uma coisa em comum: o pensamento científico.
Durante a pandemia, o público em geral começou a enxergar melhor a ciência e os cientistas brasileiros. Você acha que isso vai se manter?
Na pandemia, as pessoas descobriram que tem ciência no Brasil. Sempre viajei muito. Quando pego táxi em qualquer lugar no Brasil e me perguntam o que eu faço, digo que sou cientista. Não digo que sou professora universitária. “Ah, mas tem cientistas no Brasil?”, me perguntam. Tem esse impacto. Acho que a população começou a pensar: “Nossa, tem mais cientistas no Brasil”. Mas, ao mesmo tempo, alguns cientistas se deram muito ao trabalho de explicar de um jeito fácil. Se você quer que isso continue, vamos precisar que as universidades e os institutos de pesquisa dediquem o seu tempo para divulgação científica. É uma oportunidade, mas também um desafio. Eu não tenho formação para falar em público. Sou bacharel, não tenho formação nem para dar aula. Artista gosta de aparecer na mídia, mas cientista não porque é abrir mão da precisão. Não tem como você explicar o que faz sem abrir mão da precisão, e para nós é doloroso. Como você se apresenta, como você se veste? Fui aprendendo porque gravo muitos vídeos. É isso que a comunidade terá que fazer para dar de volta, explicar à população por que a gente é importante. Ciência é investimento, não é gasto.
Quando surgiu o interessa pela física, pela pesquisa, pela docência?
Sempre fui muito curiosa, sempre brinquei na rua. Sou do Rio, meu pai veio transferido para Canoas em março de 1964. Um ambiente com árvores, lugar alto para soltar pipas, me desafiava a fazer a pipa que ia na chuva, e aí tinha que aprender. Meu pai era sargento da Aeronáutica, tínhamos uma vida bem apertadinha. Ele consertava tudo dentro de casa porque era eletricista, e eu junto ali, aprendendo. No Ensino Médio, minha escola pública, sem grana, ganhou uns experimentos da igreja local. O diretor me pediu para ir lá à noite montar. Achavam que eu era uma boa aluna e saberia fazer. Era uma aventura, todo dia eu tinha alguma coisa para montar. Uma vez, tive que secar umas amostras. Em química, é importante secar bem devagar para cristalizar, evaporando devagar. Isso é bom fazer em um forno. Se você pensar em forno de micro-ondas, vou rir porque não existia forno de micro-ondas, elétrico muito menos. O que fiz? Peguei tijolos de uma obra do colégio e uma resistência de casa. Fiz um forno elétrico caseiro. Caiu a rede de energia porque cometi um erro, mas arrumei e deu tudo certo. Essa aventura de fazer errado, descobrir o erro, arrumar, ir inventando... Pensei: é isso que quero ser. Aí fiz o vestibular para Física, para desalento dos meus pais. Minha mãe queria Medicina, meu pai queria Engenharia. E eu teria entrado, era uma aluna muito boa. Eles aceitaram.
A vida acadêmica foi uma extensão natural depois?
Minha geração não pensava muito, não ficava planejando longe. Peguei bolsa de iniciação científica, mestrado, doutorado. Naquela época, era uma maravilha, tinha um monte de emprego. Aí as pessoas já se empregavam nas universidades. Pensei: vou sair e na volta penso. Fui para a Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, fazer o pós-doutorado. Escrevi para um cara famoso que me aceitou no grupo dele. O mundo passava por lá. Você pode ficar trancado em uma sala e não conhecer o mundo, mas eu conheci todo mundo. Vim de uma escola pública, de uma universidade onde, quando entrei, só havia os famosos de escola privada. Então eu pensava: se me olharem e pensarem “quem é essa guria?”, tudo bem. Não dava muito valor. Brinquei com meu professor: eu tenho o inglês de uma criança, mas não tenho o cérebro de uma criança. Fiquei dois anos lá. Voltei para o Brasil, e aí as redes externas me ajudaram a ter conexões com as pessoas. As revistas chegavam aqui dois meses depois. A internet nos levou ao mesmo patamar deles. As coisas começaram a ficar mais fáceis, e eu sempre me dispus a viajar. O dinheiro da pesquisa ficava apertado e, muitas vezes, usei meu salário para ir às conferências e ficar em hotel horroroso. As pessoas acham que a ciência é só o laboratório e a torre de marfim, mas não. É um imenso relacionamento entre pessoas. É uma rede, é colaborativo, é muito internacional. A gente conversa com pessoas de culturas e jeitos de ver o mundo muito distintos porque temos uma coisa em comum: o pensamento científico.
Respeito quem vai (pesquisadores que vão trabalhar no Exterior), mas tem uma dívida aí. Desde o primeiro ano primário até o doutorado e o pós-doutorado, tenho toda uma vida de emprego paga pelo povo brasileiro. Como é que vou jogar isso fora?
Você nunca quis ir em definitivo para algum país com melhores condições?
Não. Respeito quem vai, mas tem uma dívida aí. Desde o primeiro ano primário até o doutorado e o pós-doutorado, tenho toda uma vida de emprego paga pelo povo brasileiro. Como é que vou jogar isso fora? Uma vez me convidaram para ir para Boston, na Universidade de Massachusetts, criar um curso de engenharia de meio ambiente. Me fizeram uma proposta para ser chefe do Departamento de Física. Teria um poder assustador. “Marcia, você vai conseguir todo o dinheiro do mundo”, disseram. Pensei: minha dívida não é com o povo estadunidense. Disse “não, muito obrigada”. Aí criamos o curso de Engenharia Física na Física daqui. Aqui é tudo mais difícil de implementar. Nem acho que morar fora daqui seja melhor do que morar aqui. Gosto muito do Brasil. O que tem lá é mais dinheiro, mais oportunidade, mais reconhecimento. É mais fácil montar as coisas, mas isso não me seduziu porque tenho um trabalho a fazer aqui.
O feminismo foi uma pauta assumida em qual momento?
Quando eu percebi que era mulher? Quando entrei na faculdade. Antes, no Ensino Médio, éramos metade da turma. Mas, nessa transição para a área de exatas, perguntei: onde é que estão as outras? Era uma época em que, no movimento estudantil, as mulheres não tinham posições de liderança como têm agora. Por que elas estavam distribuindo panfletos e os caras falando, assumindo posições de comando? Pensei: vou fazer a minha parte. Eu via que as professoras eram tensionadas pelos grandes professores. Engraçado é que as outras alunas não enxergavam isso, mas eu enxergava de uma maneira dolorosa. Juntei os 50 tons de esquerda que havia na universidade naquela época e fizemos uma chapa para o diretório acadêmico da Física, chamada Frente Ampla. Tive a ideia, fui a presidenta, ganhei a eleição. Eu mobilizava. Até que surgiu uma grande oportunidade de fazer uma transição mais forte do que simplesmente estar lá como mais uma. A União Internacional de Físicos quis organizar um grupo de mulheres. Me mandaram. Os representantes dos outros países eram todos gente importante, mas o Brasil não conseguiu entender que essa coisa de mulheres passou a ser uma pauta no mundo. Pensei em juntar mulheres de todos os países e formar um grande evento de física. Montamos um evento superimportante com 75 países representados. Hoje a militância feminista é parte do que eu sou. Ninguém consegue separar.
As pessoas estão acostumadas com uma gestão de poder: aquela pessoa que manda é ranzinza, autoritária, quer sentar na cabeceira da mesa. Acredito que, quando algumas mulheres chegam ao poder, elas quebram essa coisa da pessoa na cabeceira, que bate na mesa e diz, autoritariamente, o que quer.
Como foi sua trajetória de cientista em um ambiente com predominância masculina e ainda, muitas vezes, resistente à presença feminina em posições de destaque?
É aquele combo dos homens que a interrompem quando você está falando, homens que vêm explicar aquilo em que você é especialista, homens que não prestam atenção quando você dá uma ideia para, um minuto depois, darem a mesma ideia. Esse combo não é imaginário, é realista. Vão sempre usar contra você o fato de ser mulher. Brinco que, em ciência, abaixo da cintura tudo é canela. Se essa é a sua “fraqueza”, usarão contra você. Teve um episódio em que eu estava em um evento discutindo um assunto. Minhas evidências eram melhores e, ao final, como o cara perdeu a discussão, ele disse que o meu perfume tinha atrapalhado o raciocínio dele. Isso é comum, é verdade, está presente. Como interpretei tudo isso? Do meu jeito. Sempre usei o humor para responder a todas essas questões. Chamava a atenção para isso. Se estou em uma reunião com outras duas mulheres, a gente se combina para não deixar os homens interromperem a gente. É um trabalho constante. Tento fazer uma militância não ranzinza, um pouco mais alegre.
A política e o poder em Brasília ainda são áreas predominantemente tomadas por homens.
A pessoa que mais manda no ministério, pela primeira vez na história, é uma mulher (Luciana Santos). O que sinto que é a surpresa? As pessoas estão acostumadas com uma gestão de poder: aquela pessoa que manda é ranzinza, autoritária, quer sentar na cabeceira da mesa. Acredito que, quando algumas mulheres chegam ao poder, elas quebram essa coisa da pessoa na cabeceira, que bate na mesa e diz, autoritariamente, o que quer. A primeira coisa que botei no gabinete, imenso, foram poltronas e um sofá. As pessoas vêm falar comigo e vão se sentar comigo, como se fosse na sala de uma casa. Quero trazer esse acolhimento para as pessoas se sentirem iguais. Podemos conversar sobre qualquer coisa, e elas serão ouvidas. Essa horizontalidade da decisão, o coletivo, é o tom da diversidade que talvez as mulheres possam incorporar na gestão. Talvez não todas, mas vejo o diálogo muito mais potencializado quando temos mulheres no poder. Sinto que isso tem bom acolhimento nesse local, talvez por ser um local com uma ministra mulher.