Um livro de 700 anos – e ainda legível, interessante, com mensagens atuais sobre fé, religião, amor, ciência e paixões. Assim é a Divina Comédia, clássico da literatura mundial escrito pelo italiano Dante Alighieri, que viveu entre 1265 e 1321. Ele terminou sua obra-prima pouco antes de morrer. O poema épico e simétrico, que descreve a viagem imaginária do próprio Dante às três esferas do além-vida para a religião católica (Inferno, Purgatório e Paraíso), é uma síntese do conhecimento científico e filosófico da Idade Média.
Não é uma leitura fácil. Muitos leitores abandonam a incursão no meio do caminho. Mas é quase um pecado (para ficarmos com o conceito moral da época) ignorar um livro de tamanha dimensão cultural. Para nos ajudar a entendê-lo existem os dantólogos, que é como são conhecidos os especialistas na obra do poeta florentino, e também estudiosos apaixonados como o gaúcho Armindo Trevisan, que lança neste mês de maio um verdadeiro guia de viagem pelo mundo imaginário de Dante Alighieri: Por uma Leitura Atual da Divina Comédia.
Trevisan tem na sua biblioteca uma estante inteira de um livro só. Cada vez que seus amigos viajavam para o Exterior e perguntavam se ele queria alguma coisa, o poeta santa-mariense pedia um exemplar da Divina Comédia. Antes de produzir o seu manual dantesco (para usarmos outra palavra derivada do personagem medieval), Trevisan leu e consultou 25 versões diferentes da Comédia, algumas várias vezes.
Entre as múltiplas simbologias da obra máxima de Dante, está a numerologia. Tudo é três (todos os versos são tercetos, por exemplo) ou seu múltiplo nove (os nove círculos do Inferno). Inspirado por esses números, o argentino Jorge Luís Borges, leitor devoto de Dante, escreveu Nove Ensaios Dantescos. Neste registro jornalístico, Trevisan também responde, a seguir, nove indagações sobre o livro que recomenda como leitura para os jovens das redes sociais.
O que Dante identifica como mais apavorante no Inferno?
Dante imaginou o Inferno com nove círculos. Neles dispôs o que existiu de perverso na revolta dos anjos contra Deus, e na rejeição voluntária da graça, oferecida por Cristo à humanidade. As coisas mais apavorantes do Inferno situam-se no Nono Círculo, no qual – dentro de quatro zonas – são punidos os traidores dos próprios familiares, os traidores da pátria, dos amigos e de seus benfeitores. O Inferno é concebido como um cone invertido. Os piores castigos estão na ponta do funil, onde Dante colocou a horrível figura de Lúcifer.
O que representam os três animais que o impediam de entrar?
A Pantera figura a luxúria, ou a cidade de Florença; o Leão representa a soberba, ou a violência; a Loba tétrica seria símbolo da avareza, ou da Cúria Romana, aliada da Casa Real da França.
Por que seu guia Virgílio não tinha acesso ao Paraíso?
Poeta italiano que viveu no tempo do Imperador Augusto, Virgílio era considerado o poeta máximo na Idade Média. Dante dirige-se a ele com admiração: “Tu és meu mestre, tu és meu autor,/ foi só de ti que procurei colher/ o belo estilo que me deu louvor” (tradução de Ítalo Mauro). Virgílio foi enviado a Dante por Beatriz. Ela obteve de Deus essa graça, para que Dante pudesse percorrer, incólume, o Inferno, até ser acompanhado por Beatriz no Purgatório. Virgílio não podia estar nem no Purgatório, nem no Paraíso, já que não conhecera a fé em Cristo nem fora batizado. Dante coloca-o no Limbo, no Primeiro Círculo do Inferno – espécie de pré-inferno –, onde estavam as crianças mortas sem batismo e os homens considerados virtuosos entre os pagãos.
O que há de bom e de ruim no Purgatório?
A palavra Purgatório e seu conceito são de origem tardia. O vocábulo só apareceu no século 12. A ideia dele, porém, existia implicitamente nos textos de Santo Agostinho. No século 13, época em que nasce Dante, significava o lugar onde as almas, já perdoadas e livres do pecado, deviam permanecer por algum tempo, antes de entrarem no Paraíso. O Purgatório tem de bom a promessa de se poder entrar no Paraíso. De negativo, implica a expiação de pecados leves. Dante admite a possibilidade de as almas do Purgatório poderem auxiliar os cristãos que estão no mundo com suas preces e missas.
Qual foi efetivamente a relação de Dante com Beatriz?
Ao reconverter-se à fé cristã nel mezzo del cammin di nostra vita, isto é, aos 35 anos, Dante – que, não obstante, iria se envolver em alguns casos amorosos depois dessa conversão, merecendo ser duramente censurado por Beatriz –, transformou a menininha que o cativara quando criança (nove anos) numa sorte de anjo humano, elevando-a a guia no lugar de Virgílio, quando este teve de deixá-lo. Dediquei um capítulo de meu livro à análise da personalidade de Beatriz, que foi, a um tempo, a deflagradora do pré-erotismo da primeira fase de Dante, tendo mais tarde se transformado em símbolo do que Deus concede a quem se arrepende, e busca a felicidade evangélica das bem-aventuranças. Ao atingir o ponto mais alto do Paraíso, Beatriz é substituída por São Bernardo de Claraval, o maior dentre os devotos da Mãe de Deus. Diante de Beatriz, sobretudo na segunda parte da Divina Comédia, Dante se humilha, aceitando as graves censuras de Beatriz à sua conduta de “mulherengo”, como o qualificou Boccaccio.
Como garantir um lugar no Paraíso?
É difícil responder a essa questão. Creio que só se consegue um lugar no Paraíso tendo muita fé, muita esperança, muita caridade. Se lá, um dia, pudermos entrar, deveremos agradecer a Deus sua misericórdia. Jesus prometeu-nos: “Onde eu estiver, vós que fostes fiéis ao Evangelho, lá estareis comigo”. Foi assim que o Bom Ladrão entrou no Paraíso, ao pedir a Jesus moribundo: “Lembra-te de mim quando estiveres no teu Reino!”.
Todos os políticos vão para o Inferno?
Há uma tradição cristã que se refere à visão de uma santa, que teria perguntado a Jesus se Judas se salvara. Jesus teria respondido: “Não te direi o que aconteceu com ele para que os homens não abusem de minha misericórdia”. Infiramos disso: há, sem dúvida, políticos desonestos, de uma autossuficiência ridícula. Mas a maioria deles parece ser infeliz. Procuram achar no poder a resposta que não acham para o enigma de sua morte individual.
O exílio de Dante foi uma espécie de Purgatório?
Dante amava sua cidade natal, Florença. Tentou, durante 19 anos, regressar a ela. Não conseguiu. Tenho a impressão de que o exílio foi decisivo para ele “se purificar” com as traições, injustiças e incompreensões sofridas e assim escrever a Divina Comédia. Agradeçamos a Deus não ter ele morrido antes de nos dar sua obra literária mais bela!
Por que a obra-prima de Dante merece ser lida 700 anos depois de sua morte?
O fato de a Divina Comédia ter sido lida por 700 anos prova que seu prazo de validade não se esgotou. Os homens podem ter-se enganado sobre o valor de obras consideradas “geniais”. No entanto, por mais que se afirme que “a unanimidade é burra”, os homens não se enganam todos, nem ao mesmo tempo. Os grandes historiadores da literatura consideram Dante um altíssimo poeta. A maioria deles o apresentam como o “sumo poeta”.
Dante legível. Ainda?
Por Armindo Trevisan
Será ainda possível ler a Divina Comédia de Dante?
Comecemos por admitir o óbvio. Nas últimas décadas, a leitura sofreu uma queda de interesse, especialmente dos jovens, embora a observação valha, também, para os adultos. Prova disso é que os jornalistas já avisam, ao publicarem seus textos, que a leitura terá uma duração previsível de tantos e tantos minutos. Quase a dizer aos leitores: “Vocês não perderão muito tempo com essa leitura!”.
Para nós, os leitores de sempre, os leitores do passado, refletir sobre isso dói. Aprendemos com nossos mestres que ler era ter o privilégio de conversar com os gênios. Que ler era torná-los vivos, reviver o que tinham pensado de mais significativo. Era uma experiência de descoberta e assombro.
Por que, então, não ler Dante?
A Divina Comédia foi considerada pelo historiador Otto Maria Carpeaux a única legível entre as epopeias – que são os poemas comemorativos de fatos fundamentais de sociedades que se extinguiram, ou permanecem vivas, até certo ponto, por suas literaturas. Ou seja, a Ilíada e a Odisseia de Homero, a Eneida de Virgílio, a Jerusalém Libertada de Torquato Tasso, Orlando Furioso de Ariosto e, sobretudo, Os Lusíadas de Camões. Concordo com o culto Carpeaux: são de difícil leitura.
Seria uma exceção a Divina Comédia? Também concordo com Carpeaux: é a única, entre essas, que se pode ler como se tivesse sido escrita em nosso tempo.
Quais as razões disso?
Em primeiro lugar, a genialidade de Dante, que fez da Divina Comédia uma danteide, isto é, uma epopeia sui-generis, em que o principal protagonista é o autor. Já nos primeiros versos Dante diz, na tradução de Cristiano Martins: “A meio do caminho desta vida/ achei-me a errar por uma selva escura,/ Quando a via veraz deixei, perdida”. Ou seja: Dante declara, nos versos iniciais, que tinha 35 anos e sua vida até aí não tinha sido uma vida cristã regular. Concentra a atenção do leitor em sua pessoa e na viagem prodigiosa que faria imaginariamente aos reinos, que sua fé situava no após-túmulo: o Inferno, o Purgatório e o Paraíso.
Dante Milano advertiu, ao traduzir poemas da Divina Comédia, que mitos de Dante não interessam mais aos leitores de hoje. Disse, explicitamente: Dante é lido atualmente só por ter escrito “versos inesquecíveis”.
Um poeta só merece ser lido por seus versos inesquecíveis. Cito alguns desses, presentes na Divina Comédia: os 90 versos da tragédia amorosa de Francesca de Rímini e Paolo; o episódio do Conde Ugolino, que, condenado à morte, foi encerrado numa prisão, onde para subsistir (ao que deixa entender) teria comido a carne de seus filhos mortos.
Dirá o leitor avisado: “Mas funcionam as traduções para o português?”. Respondo: funcionam! Com a ressalva: nenhum grande poema pode ser traduzido integralmente para outra língua. Goza-se, sempre, o prazer da parcialidade. Dante foi traduzido por vários autores. Não nos apressemos a criticá-los. Tenhamos-lhes gratidão. Se não podemos beber um Chatonneuf du Pape, contentemo-nos em beber um bom vinho nacional.
Neste meu livro, procurei chamar a atenção para as quebras de tensão das traduções. Foi um meio que encontrei para sugerir ao leitor que se disponha a aprender algo da língua italiana. Ou, ao menos, que tenha um ouvido musical, que lhe permita supor o que Dante escreveu. Mas insisto: vale a pena ler a tradução. A poesia – a grande poesia – só pode nascer uma vez: no ventre da língua materna do poeta. De todo modo, seu “segundo nascimento” é uma realização secreta e emocionante do leitor, ao oralizar o original, com aprovação de sua mente e de seu coração.