Primeiro latino-americano contemplado com o Prêmio Templeton, conhecido como "Nobel da espiritualidade", o físico e astrônomo Marcelo Gleiser conduziu a última conferência da temporada 2022 do Fronteiras do Pensamento na noite desta quarta-feira (9). O ciclo de palestras na Casa da Ospa terminou da mesma maneira como começou: com a casa cheia. Neste ano, o tema foi Tecnologias Para a Vida — assunto que ficou nítido na fala do brasileiro, que relacionou as ameaças do avanço tecnológico à destruição do meio ambiente na palestra Como Reinventar a Humanidade na Era Digital?, buscando apontar um caminho para a reconciliação.
A palestra iniciou com a performance do Duo Clarinete e Piano, da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa), que executou uma sonata de Francis Poulenc — como parte da tríade cultural formada pela Ospa, Bienal do Mercosul e Fronteiras. O professor Rualdo Menegat foi o mediador da noite.
Um dos filósofos da ciência mais importantes do Brasil e do mundo, Gleiser participou do primeiro Fronteiras do Pensamento e se considera um “veterano”. Neste ano, propôs uma reflexão sobre o que significa ser humano neste momento no século 21, com tantas transformações rápidas, e sobre qual a nossa relação com o planeta Terra.
Para ele, há um lado de luz e outro sombrio na ciência e nas aplicações tecnológicas, e este é o momento de pensar sobre o que se deseja fazer com as tecnologias agora e nas próximas décadas.
— A verdade é a seguinte: a humanidade está numa encruzilhada. Estamos em um ponto em que as decisões que tomamos agora, nesta década, esta é a década das grandes decisões, vão forjar um caminho que pode ser, talvez, ainda sustentável para o nosso projeto de civilização, ou não — ponderou Gleiser.
O físico guiou a plateia por uma revisão histórica, lembrando descobertas científicas. Explicou como a natureza era tida como algo sagrado, mas que foi se transformando com a criação da agricultura, das cidades e da expansão do mercantilismo a partir da exploração das riquezas naturais — tornou-se, portanto, um objeto de exploração. Deste modo, a Terra foi dessacralizada e esquecida, e a realidade sagrada foi se tornando mais abstrata conforme a ciência avançava.
Com a Revolução Industrial, passou-se a buscar meios de sustentar o projeto de civilização, utilizando fontes como o carvão e culminando na descoberta do petróleo e dos combustíveis fósseis, que alimentam o crescimento desenfreado do progresso (e da população, que precisa sobreviver). Apesar de ter gerado a sociedade moderna, esse processo é um dos responsáveis pela situação que enfrentamos atualmente.
— Nós somos os vampiros da Terra, essencialmente. Nós comemos as entranhas da Terra (combustíveis fósseis) enquanto espécie para sustentar esse crescimento incrível — definiu o professor.
Gleiser destacou que, por um lado, devolvemos ao planeta plástico, lixo, gases poluentes. Por outro, cidades grandes, coisas bonitas e conforto, gerando uma dualidade. O problema, ressaltou, é quando a dualidade se desequilibra, como nos tempos atuais.
Segundo o professor, a maioria das pessoas que está pensando a realidade já entendeu que é a hora de pagar a conta. Ele alertou ainda que o futuro traz promessas fantásticas e, ao mesmo tempo, riscos existenciais que fabricamos.
Um desses riscos é vinculado à mecanização e automação: ao mesmo tempo que são fundamentais, por pouparem serem humanos de tarefas e perigos, gerarão um “problema gigantesco”. Ele exemplificou ao citar os carros autônomos, que causarão o desemprego de milhões de motoristas — uma massa de mão de obra que não é especializada e que precisará ser retreinada para continuar sendo útil para a sociedade.
O brasileiro ressaltou que o cenário não é novo, mas agora impressiona pela velocidade e pela falta de posicionamento ético das corporações. Ele lembrou que é preciso questionar quem deverá se preocupar com isso, o governo ou as empresas, o que, no momento, não está sendo realizado por ninguém. Além disso, o astrônomo levantou um debate sobre questionamentos éticos, como dilemas em acidentes e as decisões que as máquinas deverão tomar por nós.
Na visão do palestrante, estamos no século da biologia, com o avanço da engenharia genética — que manipula os genes dos seres vivos e a “essência da vida” pela primeira vez na história. O campo pode ser positivo, pela possibilidade de curar doenças genéticas e aliviar o sofrimento humano (o que ele julga como a função mais digna da ciência), mas também pode virar um desafio devido a alianças da ciência com Estado, indústria e poder.
Poderia levar, por exemplo, ao desejo de criar exércitos de supersoldados. O pesquisador questionou, então, quem legislará sobre isso e até que ponto é permitido avançar sem tropeçarmos na história do Frankenstein. A maior preocupação do professor é o fato de a engenharia genética poder ser desenvolvida em casa, sem necessitar de sofisticados laboratórios.
Além disso, conforme Gleiser, as novas tecnologias estão causando uma transformação profunda da sociedade moderna devido à expansão e à integração entre humanos e máquinas. Os próprios telefones passaram a ser uma extensão da identidade — e quanto mais utilizamos a tecnologia, menos nos lembramos de quem somos, passando a ser algo novo. Mesmo assim, o professor não defende um retorno a outros tempos.
O limite dessa expansão é a ideia da criação de uma inteligência artificial com consciência de que existe — algo que refuta como uma “grande besteira”, visto que ainda não há conhecimento sobre como funciona a inteligência, o cérebro humano e a subjetividade da existência. Visto que nossa percepção da realidade é dependente do corpo, ele argumenta que talvez isso até seja possível, mas seria completamente diferente para uma máquina. O limite total que descarta é o transhumanismo (a ideia de que a ciência vencerá a morte), pelo mesmo motivo: não há “nem o começo” do conhecimento para tal, além de ser tecnologicamente difícil.
Portanto, a explosão tecnológica, apesar do lado bom, traz riscos existenciais que podem ameaçar a sobrevivência da espécie. E o maior deles, salientou, é causado pelas mudanças climáticas, que já estão acontecendo — uma vez que a máquina industrial foi nutrida abusando da Terra.
— Esquecemos a relação com o mundo natural. Esquecemos uma coisa fundamental: nós fazemos parte integral do universo, cada um de nós carrega no corpo a história inteira do universo. Somos matéria viva, que veio de estrelas que explodiram antes do Sistema Solar existir — pontuou.
O pesquisador ressaltou que se os 4 bilhões de anos de existência do planeta forem contraídos em 24 horas, os seres humanos chegariam cinco segundos antes da meia-noite. Porém, mesmo em tão pouco tempo, já causaram um grande caos, e o sucesso de sua expansão os fez esquecer que dependem do planeta.
— A pandemia, erupções vulcânicas, maremotos e terremotos mostram o quanto não estamos acima da natureza, estamos totalmente codependentes das formas de vida que existem. Se achamos que podemos resolver problemas ecológicos da ciência se esquecendo dessa hierarquia horizontal que existe no planeta, estamos superenganados — afirmou, ressaltando que essa unificação fica visível no fato de que todos os seres são descendentes de uma única bactéria e que carregamos o código genético de árvores, plantas e todo tipo de animal.
Gleiser também destacou que a nova ciência da astrobiologia tem provado cada dia mais que quanto mais se olha para os planetas, mais se entende que a Terra é um lugar "absolutamente único". O astrônomo também aproveitou o momento para brincar com a possível visita de "extraterrestres" a Porto Alegre, devido à aparição de luzes no céu por várias noites consecutivas.
— Nós somos os únicos humanos no universo, não vai haver outro planeta que vai ter a mesma história evolucionária, uma outra espécie como a nossa. Somos a espécie que é capaz de contar a história de quem somos. E essa espécie sobe moralmente para se tornar a voz do universo. Ele só tem uma história porque estamos aqui para contar — frisou.
Apesar de ter destruído grande parte do planeta, o ser humano construiu a narrativa da história cósmica.
— Talvez exista um outro planeta parecido, mas não vai ser igual. Imagina só que tristeza seria se nós não conseguirmos sobreviver a nós mesmos, e o universo se calasse. Aí realmente seríamos aquele pontinho de nada que existe no universo, sem ninguém saber que houve uma espécie inteligente, capaz de contar sua própria história, de honrar com a dignidade de estar vivos, passando ela de geração a geração — completou.
Para Gleiser, o único modo de salvar o projeto de civilização é a reintegração com a natureza, compreendendo que o ser humano não está acima de nada e é parte dela, e ressacralizá-la, voltando a entender que é preciso respeitar o caráter sagrado da biosfera, o que chama de biocentrismo.
Programação presencial e online
A temporada 2022 do Fronteiras do Pensamento contou com 12 conferências presenciais e online. No ambiente virtual, Maria Homem, Martha Gabriel, Rodrigo Petronio, Mayana Zatz, Jorge Caldeira e Sidarta Ribeiro compartilharam suas ideias. Tanto as realizadas remotamente, como as conferências presenciais estão disponíveis na plataforma do evento até 15 de dezembro. O acesso aos conteúdos digitais pode ser realizado pelo site.
O Fronteiras do Pensamento tem patrocínio de Hospital Moinhos de Vento, Unimed Porto Alegre, Dexco e Icatu Seguros, com parceria acadêmica da PUCRS, parceria empresarial de Uniodonto, Sinergy e Colégio Bertoni Med, parceria institucional do Pacto Global e promoção do Grupo RBS.