Em entrevista, o professor de Economia e criador do Núcleo de Estudos em Economia Cultural e Criativa da UFRGS (NECCULT) Leandro Valiati avalia os efeitos da pandemia de coronavírus na cultura, um dos primeiros setores impactados pelas restrições a eventos e aglomerações de pessoas.
Há alguma estimativa do impacto que o coronavírus já teve ou poderá ter no setor cultural brasileiro?
Nós não temos ainda estimativas porque é tudo muito recente. E as estimativas econômicas tradicionais costumam olhar para trás, partem de um registro de um passado mais recente para encontrar esses dados. É claro que já se sabe que o impacto no PIB da cultura será muito agressivo, especialmente porque as atividades culturais são afetadas, proporcionalmente, muito mais do que outras atividades econômicas, portanto devem ser socorridas em maior grau pelo setor público. Digo isso sobretudo porque elas envolvem uma participação grande de público, aglomerações, o deslocamento para consumo em um lugar específico, como teatro, museu, cinema. A precaução que o Brasil está entrando agora afeta gravemente a espinha dorsal de todo o ciclo econômico da cultura. Não tem telentrega de cultura. Certamente esse mercado precisa de auxílio.
Como estão as perdas a nível global?
Estão mais acentuadas do que no Brasil, porque o Brasil começou essas medidas há menos tempo. A Espanha tem toda a sua área de patrimônio, museus, cinemas, teatros fechados. Não há mais renda circulando no setor cultural. Nesse período não há impacto econômico da cultura na Espanha. Imagina o tamanho disso. O mesmo na Itália, berço dos grandes sítios de consumo cultural, patrimônio, história, está absolutamente fechada. A França endureceu as medidas e as pessoas também não podem mais sair às ruas. Você vê também todo o patrimônio cultural francês fechado, Museu do Louvre, D'Orsay, e todas as economias que envolvem esses equipamentos culturais. O turismo, que afeta o consumo cultural e vice-versa. As perdas globais são enormes. Os cinemas e museus estão fechados nos Estados Unidos, no Canadá, no Brasil. Certamente, em escala global, a cultura está vivendo algo inimaginável na história.
Existem paralelos para esta crise na história? Por exemplo, os cancelamentos causados pela gripe H1N1 ou até mesmo as grandes guerras mundiais?
É claro que os mercados culturais são diferentes, mesmo quando houve a H1N1, que ocorreu 10 anos atrás. Hoje, nós temos alguns recursos para consumo cultural baseados nas tecnologias de informação e comunicação. Temos o streaming, livros eletrônicos, as pessoas podem consumir música e conteúdo audiovisual em casa. É algo que torna essa crise diferente da do H1N1 e das guerras mundiais. Isso é algo positivo: temos outros canais que não são a rua, mas do ponto de vista da intensidade em que os equipamentos culturais estão fechando, na minha visão, não há um paralelo histórico. Pode significar a falência de pequenas e médias empresas culturais. Pode realmente ser uma crise de condições incontornáveis para a cultura, por isso, a enorme importância de o setor cultural estar sim contemplado nas medidas de apoio, como todos os países estão fazendo.
Como fica a situação financeira dos profissionais da cultura em tempos de quarentena? É uma catástrofe ou há espaço para soluções criativas? Temos visto alguns músicos pensando em fazer lives, por exemplo, mas preocupados com a maneira como cobrariam os "ingressos".
Acho que o streaming pode ser um caminho, mas não será nessa crise que vamos construir um modelo de negócios estável para o streaming, que hoje tem modelos de negócio muito claros e efetivos para o cinema, para o livro, com a Amazon, para a música, com Spotify, Deezer, iTunes, mas não deixa de haver certa concentração. Você tem que acessar esses mercados a partir das grandes plataformas digitais. É um modelo que bloqueia um pouco as inovações. Se um músico for fazer uma apresentação live pelo youtube, como ele vai monetizar isso? Essas soluções não são mágicas, é um processo que pode até gerar inspirações que fiquem, modelos individuais de monetização, precificação, cobrança, possibilidades de produzir sustentabilidade econômica a partir de novas ideias usando as plataformas digitais. Essa crise pode gerar novos modelos e mostrar caminhos, mas não posso esperar que isso vá compensar as perdas que os artistas estão tendo, pois eles estão impossibilitados de trabalhar.
Vamos ver uma forte migração para formas de consumo de cultura à distância?
Imagino que vai haver muito mais migração daqueles que já usam plataformas, eventualmente, para consumir alguns pacotes pagos. Não vejo possibilidade real da grande massa de brasileiros de classes mais baixas passarem a usar essas formas digitais porque há outros elementos que dificultam isso, como renda e acesso à equipamentos, à interne
LEANDRO VALIATI
Acho que vai haver migração, mas a força dela não é muito clara. No Brasil, tem uma questão ligada à renda e à infraestrutura de internet e equipamentos. Imagino que vai haver muito mais uma migração dentro daqueles que já usam a plataforma, eventualmente, para consumir alguns pacotes pagos. Não vejo possibilidade real da grande massa de brasileiros de classes mais baixas passarem a usar essas formas digitais porque há outros elementos que dificultam isso, como renda e acesso à equipamentos, à internet.
Essa crise pode ter um impacto positivo em algum segmento, como literatura, televisão e plataformas de streaming?
Acho que vai haver intensificação do consumo e aumento do lucro, mas num regime muito concentrado para as empresas, como Netflix, Amazon Prime, as de música etc. Mas a pergunta que eu coloco é o que disso se reverte para as economias locais? Para mim, é muito claro que as plataformas digitais tem um modelo de negócio que privilegiam as próprias plataformas e não propriamente os artistas. Então é positivo para o aumento de lucro só para as plataformas. Acho que essa ampliação do streaming e do consumo digital precisa ainda de regulação. É um outro assunto, um assunto maior, mas essa crise pode ser uma boa oportunidade para a gente olhar para isso e começar a discutir mais seriamente a regulação e democratização dos espaços nas plataformas digitais, dos produtores e dos consumidores.
Qual segmento será mais impactado negativamente? O cinema, que trabalha com grandes orçamentos? Os espetáculos, que reúnem muitas pessoas?
Evidentemente as artes performáticas, que estão perdendo a possibilidade de ter público, e os setores que necessitam de uma preparação prévia muito grande, como a preparação de um filme, que leva às vezes um ano. Eles vão ter um problema orçamentário, de timing, de execução dos projetos. Sem contar a crise financeira que afeta todos os setores e muito mais os de cultura. Mesmo na retomada da crise, a cultura passará a ser vista como algo muito mais supérfluo. O consumo cultural não é retomado no mesmo patamar, rapidamente, como nos outros setores.
É realista esperar que artistas e produtoras recebam auxílio financeiro do governo brasileiro? Nesse sentido, algum país adotou uma política que chamou a sua atenção?
Acho que sendo ou não realista, a sociedade precisa demandar isso do governo. A cultura brasileira é muito rica para sofrer mais um ataque muito grave. O setor cultural como um todo está vivendo um momento de muita instabilidade do ponto de vista da sustentabilidade econômica. Porque as leis de incentivo à cultura foram reduzidas a um mínimo histórico. Há uma desvalorização da atividade cultural que vem dos últimos governos, do segundo governo Dilma, do governo Temer, e se acentua agora num governo que elegeu a cultura como um dos espaços de disputa ideológica. Isso é muito grave para os mercados culturais que são muito vivos e importantes para momentos de crise, inclusive, porque lidam com novas tecnologias, valores muito particulares e específicos que apenas alguns países têm, e lida com um ativo econômico que é muito heterogêneo e específico. Por isso é um valor. Ninguém tem uma cultura como a do Brasil. Por isso, o Brasil tem um espaço importante nos mercados mundiais. Qualquer governo precisa olhar para isso. A Inglaterra adotou para mim a melhor estratégia. O Arts Council da Inglaterra publicou medidas de apoio para os setores culturais. O fundo de cultura inglês, que vem da loteria, e é público, regido pelo Arts Council UK, informou a todas as organizações culturais que fazem parte do portfólio de fomento público que continuarão recebendo recursos independentemente de estarem executando ou não as atividades publicamente porque estarão impedidos disso. Com uma ressalva: desde que continuem empregando os profissionais freelancers que atendem o setor cultural. É um olhar para a cadeia. Continuam dando dinheiro público mesmo sem o produto no final, mas garantem que o profissional freelancer que não é empregado fixo da organização, mas faz parte do contexto cultura continue com a sua renda garantida. Isso foi feito pela Inglaterra, um país que agora é comandado pelos liberais de uma ideologia muito intensa. Eles entendem a importância de manter a cultura viva nesse momento. Acho que é uma medida importantíssima. O modelo francês é altamente subsidiado e mais estável. E já tem algumas medidas, como a intermitência que garante renda a artistas que não estão trabalhando, ou estão entre dois trabalhos porque é muito comum um artista terminar um trabalho e passar um tempo até assumir outro. Então a França vai continuar pagando a intermitência aos artistas durante esse período de lockdown. Os Estados Unidos vão apoiar o cinema num grande pacote de US$ 1 trilhão. Todos os países que se preocupam com a cultura, tanto como atividade econômica quanto atividade de produção de valor social estão apoiando a cultura num momento contracíclico. No Brasil, não vi nenhuma ação específica para o setor cultural vinda do governo federal. Vejo preocupação nos governos estaduais, nos municípios, mas não vejo ações efetivas.
E o que a população pode fazer para ajudar?
Tem que exigir dos governos, que eles preservem a cultura pelo repositório de valor econômico e social que esses setores trazem. Acho que uma retomada das sociabilidades após a crise deve ter a cultura como protagonista. E que mesmo nas quarentenas e isolamentos, as pessoas continuem valorizando e consumindo a cultura brasileira e encontrando caminhos para ajudar a manter as coisas acontecendo. Se a população enxergar artistas tentando fazer algo novo, usando plataformas digitais para tentar criar um modelo de sobrevivência econômica nesse período de crise, realmente sugiro que ajude e apoie essas ações.
À luz do decreto da prefeitura de Porto Alegre que torna oficial a proibição de aglomerações e fecha estabelecimentos, a economia da cultural local pode entrar em colapso?
Acho que isso só intensifica a tendência dos impactos que já existiam e acelera a crise para o setor. Pode sim haver um colapso e por isso é muito importante que, além das restrições, que são necessárias e compreensíveis, a prefeitura tente produzir algum apoio às atividades culturais.