Um disco de ouro. Não apenas isso: o primeiro e até hoje único disco de ouro da história da música instrumental brasileira. Há 40 anos, ninguém esperava que Gaita Ponto, álbum de estreia de Renato Borghetti, vendesse mais de 100 mil cópias. Quatro décadas depois, o gaiteiro deve sair em turnê para celebrar esse trabalho, que impactou para sempre a música regional gaúcha.
Gaita Ponto chegou às lojas em maio de 1984, embora seu lançamento oficial tenha sido realizado no dia 18 de junho, com um arroz-de-carreteiro no 35 CTG. Como aponta o jornalista Márcio Pinheiro na biografia Esse Tal de Borghettinho (Belas-Letras, 2015), o LP superou todas as expectativas rapidamente: em quatro meses, já tinha chegado à marca da centena de milhares de cópias comercializadas.
Borghetti era pouco mais do que um adolescente quando se transformou em uma referência na música brasileira – tinha 20 anos quando Gaita Ponto foi lançado. Ele começou a tocar aos 12, quando ganhou de presente uma Hering de oito baixos. Ao lado de colegas, realizou suas primeiras apresentações em eventos escolares.
Enquanto tomava gosto pelo instrumento, havia quem o desestimulasse. Uma orientadora escolar, certa feita, avaliou que Renato deveria desistir da gaita. “Ele é muito desafinado”, definiu. Mas o jovem seguiu insistindo.
Como seu pai, Rodi Borghetti, era bastante ligado aos costumes gaúchos – foi patrão do 35 CTG em algumas ocasiões, desde 1967 –, o gaiteiro e sua família frequentavam o ambiente tradicionalista. Ainda na adolescência, ele integrou o grupo de danças folclóricas do 35 e também declamava. Em pouco tempo, começou a conquistar os frequentadores com sua habilidade no instrumento. Com seu irmão Marcos, formou a dupla Irmãos Borghetti para se apresentar na churrascaria no galpão anexo do 35. Em seguida, o violonista Paulo Tomada seria incorporado ao projeto, formando um trio.
Marcos passou a focar nos estudos, enquanto Renato continuou tocando o baile. Em 1979, integrou o grupo de Juarez Bittencourt, ao lado de João de Almeida Neto e de Elton Saldanha, para participar da 9ª Califórnia da Canção Nativa, interpretando Retorno. Logo chamou atenção de outros músicos e passou a frequentar o circuito de festivais pelo interior do Estado.
Com Elton Saldanha, João de Almeida Neto e Max de Narde, Borghetti criou o grupo Lixiguana, apresentando-se pelo Interior e em bares da Capital. Ele também tocou com César Passarinho no começo de anos 1980, além de Luís Carlos Borges, Porca Véia e Eraci Rocha, e fez dupla com Neto Fagundes.
Mesmo que fosse “tímido, de poucas palavras, cabeça para baixo, sempre concentrado na gaita”, como descreve Pinheiro, Renato chamava atenção por onde passava. Em uma reportagem de Zero Hora sobre um show coletivo no Auditório Araújo Vianna, em 1981, o jornalista e colunista de GZH Juarez Fonseca escreveu: “Que brilho e que força a gaita de Borghetti deu às músicas de que participou!”.
O final de 1983 era um momento promissor na carreira musical de Borghetti, com uma agenda cheia de apresentações em CTGs, bares e participações nos mais variados eventos nativistas.
– Ele não era reconhecido ainda no sentido de ter um trabalho amadurecido e firmado. Mas foi aparecendo pelas beiradas, nos festivais, e chamando atenção das pessoas – avalia Juarez.
Era preciso gravar um disco.
Originalmente, a ideia do músico era comprar um motorhome. Como vivia percorrendo o Interior, aquela mistura de ônibus com casa poderia lhe propiciar um certo conforto na estrada – ao contrário dos carros convencionais que utilizava.
– Eu fazia os cálculos. Se a tiragem do disco fosse mil e vendesse tudo, dava para comprar o motorhome, um modelo usado. Isso pensando em um trabalho independente – explica o gaiteiro.
O plano inicial era gravar um disco por conta própria, sem gravadora. Para isso, seu pai o apoiou financeiramente, e o músico conseguiu horários alternativos no Estúdio Eger. A base do álbum foi gravada em dois dias.
– Foi muito difícil, eu era inexperiente. As gravadoras usavam todos os horários de estúdio. Estava sempre tudo tomado. Só conseguia a madrugada, a partir das 3h ou 4h da manhã – lembra Borghetti.
Um jovem com jeito de roqueiro fazendo música regional. Uma figura de impacto, curiosa e meio misteriosa, com aquele chapéu tapando os olhos. A capa já traz essa mudança. Fora que a música instrumental quase não existia no Rio Grande do Sul. E foi bem a época do boom dos festivais. Está tudo, de certa forma, sintetizado nesse disco.
JUAREZ FONSECA
Jornalista e colunista de GZH
O violonista Enio Rodrigues, que então integrava Os Serranos, foi contratado para acompanhá-lo nas gravações. Ele lembra que, nas horas vagas, costumava trabalhar em registros de grupos e artistas. Atuava como um frila.
– Borghettinho ia muito nos bailes que tocávamos em Porto Alegre, gostava de nos assistir. Ele teve simpatia pela minha maneira de tocar e me convidou para o disco. Então, fiz uma base e nada mais – recorda Enio.
O repertório do álbum foi selecionado com base nas músicas que Borghetti tocava em suas apresentações. É um disco de ritmos variados – como chamamé, rancheira, xote, milonga, chacarera e polca. Entre as 12 faixas, apenas uma é de autoria do gaiteiro: Carreirada, composta em parceria com Paulo Tomada, fechando o lado A.
A implacável Milonga para as Missões, de Gilberto Monteiro, abre Gaita Ponto como um perfeito cartão-visita. Até hoje a música integra o repertório de Borghetti, assim como dois clássicos do chamamé argentino: Merceditas (de Ramón Sixto Ríos) e Kilómetro 11, de Tránsito Cocomarola.
Há também duas faixas d’Os Serranos (Redomona e O Sem Vergonha), além de Llegada (Felix Peres Cardoso), Bailinho na Capela (Adelar Bertussi e Itajaíba Mattana), O Rancho/Cerca de Pedra (Miguel Lima), El Toro (Alberto Castillo e Pedro Sánchez), Minuano (Sadi Cardoso) e Tio Bilia na Oito Baixos (Tio Bilia), que fecha o disco.
– Eu nem sabia que estava fazendo música instrumental. Não canto até hoje, só queria o registro das músicas que tocava nos CTGs e nos encontros. O disco é muito espontâneo – descreve Renato.
No entanto, quando as gravações ficaram prontas, algo não o agradava. Para o artista, o trabalho transmitia uma concepção de disco em duo, e ele imaginava uma coisa maior. Até que surgiu a figura do lendário produtor musical Ayrton “Patineti” dos Anjos – responsável por lançar artistas dos mais variados estilos musicais no Estado.
Patineti conta que um dia chegou ao estúdio para buscar uma trilha em que estava trabalhando e avistou Borghetti. O instrumentista convidou o produtor a ouvir o disco. O produtor gostou do resultado, mas deixou seus pitacos para o jovem.
– Dei um toque para ele, disse que podia fazer umas mudanças e convidar dois músicos de Os Mirins: Oscar Soares, um baita violonista, e mais o Chico (Francisco Castilhos, baixista). “Pega esses dois. Faz o Oscarzinho dobrar esse violão”. Eu dei uma bestiada no disco, me meti (risos) – diverte-se Patineti.
'Gaita Ponto' é um trabalho criativo, intuitivo e verdadeiro de um artista que soube fazer uma síntese da música feita no Rio Grande do Sul daquela época. Com o disco, Borghetti se afirmou como o ponta de lança de um neonativismo.
MÁRCIO PINHEIRO
Jornalista, biógrafo de Borghetti
Renato até pensava em regravar o material, mas Oscar o convenceu de que não era necessário. Só pediu autorização para inserir mais violões.
– Os dois deram uma acrescentada na instrumentação. Aí ficou um trabalho mais organizado, do jeito que eu imaginava. O disco ficou maior – acrescenta o instrumentista.
O projeto gráfico do LP coube a Juarez Fonseca, enquanto as fotos da capa e também da contracapa foram realizadas pelo fotógrafo Tude Munhoz, no sítio que os Borghetti mantinham na zona rural de Viamão, Região Metropolitana da Capital.
Essas imagens foram produzidas em uma sessão com Renato e Elton Saldanha, que foram até o sítio posar para fotos que seriam utilizadas em divulgação. Quando o projeto do disco se consolidou, houve uma forma inusitada de pagamento ao fotógrafo.
– Eu ainda estava naquela fase de disco independente, então o Tude fez uma proposta. Quando a gente fez as fotos, tinha um jipe velho por lá. Estava todo estragado, mas andava. “Eu troco meu trabalho de fotos, me acerto com Juarez, mas fica tudo pelo jipe”, ele disse. Era um Willys daqueles bem antigões. Depois que pegou o carro, Tude parou umas 10 vezes no caminho de Viamão até Porto Alegre, mas chegou (risos) – relata Renato.
Juarez selecionou as imagens do disco, que foram cercadas por uma moldura vermelha que ele projetou. Para a capa, foi escolhida uma foto em preto e branco do músico, que veste bombacha clara, camisa escura, usa um chapéu que lhe tapa os olhos e carrega gaita nos ombros. Ele está de pés descalços e caminha em direção ao fotógrafo. Ao fundo, um cavalo pasta no campo. Na contracapa, há um registro do gaiteiro de costas, como se fosse um outro ângulo da imagem da capa.
"Borghettinho Jackson"
O que era para ser um lançamento independente acabou ganhando outra proporção graças à Patineti. Ele levou o trabalho pronto à recém-criada RBS Discos, que assumiu o lançamento em parceria com a gravadora Som Livre, garantindo divulgação na TV. A tiragem inicial de mil exemplares, prevista inicialmente por Borghettti, aumentou para 10 mil por conta da confiança (ou megalomania) do produtor.
– Acho que virei um tio do disco (risos). Um cara que não é parente, mas quer ser e se escala – brinca Patineti.
Só que Gaita Ponto iria muito além de qualquer projeção inicial. O álbum começou a escalonar rapidamente. Juarez lembra que Milonga para as Missões tocava em rádios populares, que jamais haviam executado música instrumental.
– Aí está a medida de como foi a projeção dele, uma coisa vertiginosa – define o jornalista.
Para se ter ideia do sucesso, Gaita Ponto vendeu mais do que Thriller, de Michael Jackson, no Rio Grande do Sul naquele período (lançado em 1982, o trabalho do Rei do Pop seguiria empilhando cópias vendidas por mais um tempo, se tornando o disco mais vendido da história fonográfica mundial). Tal façanha fez com que alguns brincassem, chamando o gaiteiro de “Borghettinho Jackson”, como relata Márcio Pinheiro na biografia.
Com o passar dos meses, o disco começou a conquistar o restante do Brasil, tornando-se pauta em jornais e revistas do centro do país. O músico saiu de Porto Alegre para fazer um circuito de divulgação em outros Estados, apresentando-se em programas locais diversos.
Até o assédio feminino passou a ser explorado pela imprensa como forma de explicar as vendas em alta. Aliás, a Revista ZH, suplemento de fim de semana de Zero Hora à época, realizou naquele período um concurso que distribuiu 40 LPs de Gaita Ponto entre as melhores respostas para “Em minha opinião, Renato Borghetti é…”. O jornal recebeu cerca de 2 mil cartas, devidamente enviadas pelo correio tradicional, não só do Rio Grande do Sul, mas também de outros Estados. A maior parte das respostas vieram do público feminino, de diversas faixas etárias – algumas até expressando um sentimento maternal.
“Ele é um ‘neto’ querido desta vovó. Cada vez que ouço sua música levanto o volume do rádio”, escreveu Zaida Alviggi, então com 74 anos. “Ele é o gaudério com pinta de roqueiro, é o tipo do cara que agrada a todos, desde criança até velhos”, disse Magda da Silva, 13. “Um anjo tímido num corpo de homem”, definiu Tania Barbosa, 24. “Sua gaita é maravilhosa, porém sua maneira de se apresentar é horrível – pés descalços, chapéu nos olhos e cara fechada”, criticou Lygia Mahlmann, 71.
Borghetti reconhece que era mais “caladão” naquela época:
– Credito isso à música instrumental. Nem as pessoas estavam acostumadas com o trabalho ser instrumental e “popular”. Para mim, eu estava ali no palco somente para tocar, mais nada. Não sabia falar direito em público. Por não cantar, estava sempre acompanhando outros músicos. Tive que aprender isso. Ainda não acho tão necessário uma fala muito grande no show, só o essencial.
A fórmula do sucesso
Há muitos fatores que podem explicar o sucesso de Gaita Ponto. O primeiro e mais óbvio é a qualidade virtuosa de Borghetti com o instrumento, que explora eximiamente diferentes ritmos regionais. Para Márcio Pinheiro, cabe destacar também a inovação empreendida pelo então jovem músico.
– Gaita Ponto é um trabalho criativo, intuitivo e verdadeiro de um artista que soube fazer uma síntese da música feita no Rio Grande do Sul daquela época. Com o disco, Borghetti se afirmou como o ponta de lança de um neonativismo – frisa o biógrafo.
Para Pinheiro, Gaita Ponto teve um papel decisivo para a música regional gaúcha:
– Não apenas deu uma dimensão nacional ao trabalho de um artista regional como também abriu espaço para contemporâneos de Renato e, a seguir, para muitos músicos que surgiram posteriormente. Foi e é um disco importante no panorama da música instrumental brasileira, admirado por nomes como Sivuca e Hermeto Pascoal, e que até hoje pode ser ouvido com o mesmo prazer com que foi ouvido há 40 anos.
Juarez ressalta que Gaita Ponto também teve sua importância estética, ao influenciar uma garotada a tocar gaita, mas não ficar presa ao fardamento gaúcho. Tratava-se de um sujeito que destoava daquela caricatura gauchesca tradicional, geralmente um sujeito mais velho pilchado.
– Um jovem com jeito de roqueiro fazendo música regional. Uma figura de impacto, curiosa e meio misteriosa, com aquele chapéu tapando os olhos. A capa já traz essa mudança – analisa. – Fora que a música instrumental quase não existia no Rio Grande do Sul. E foi bem a época do boom dos festivais. Está tudo, de certa forma, sintetizado nesse disco.
A partir de Gaita Ponto, Borghetti ganharia o mundo e ficaria marcado por uma universalização de sua música. Lançou dezenas de álbuns, tocou com nomes do mais diversos estilos musicais (a lista é extensa, vai de Luiz Gonzaga a Bidê ou Balde, do rock ao erudito), rodou o mundo e criou a Fábrica de Gaiteiros em 2011 – projeto com o objetivo de difundir o instrumento aos jovens.
Para celebrar o disco que mudou sua vida, Borghetti pretende realizar uma turnê comemorativa em que irá tocar a maioria das faixas de Gaita Ponto. A série de shows deve começar ainda neste primeiro semestre. Sobre a aclamação do álbum de estreia, o músico pondera:
– Estava no lugar certo, na hora certa. O movimento era forte de uma música que estava oxigenando via festivais. É um bom repertório, que ainda hoje toco.
A partir do sucesso de Gaita Ponto, o músico logo adquiriu seu primeiro apartamento e saiu da casa dos pais. E quanto àquele motorhome pretendido inicialmente?
– Não comprei. Ainda bem, baita fria!