É noite de espetáculo na Fazenda São Francisco do Pinhal, em Júlio de Castilhos, região central do Estado. Em um galpão de pedra aquecido por fogo de chão, 46 mulheres dividem-se em grupos para apresentar músicas criadas de um dia para o outro. São cantoras, instrumentistas, melodistas e declamadoras, muitas frequentando festivais nativistas desde a infância. Nesse evento, no entanto, há uma regra principal: da porteira para dentro, homem não passa.
A ordem é da dona da fazenda, a cantora e apresentadora Shana Müller, 42 anos, uma das vozes femininas mais conhecidas da música regionalista. Desde que começou a sair em defesa da mulher no movimento tradicionalista, também tem pensado em como aplacar o machismo nas canções gauchescas, não somente apontá-lo. Inspirada na Barranca, um dos mais antigos festivais do Estado, onde os homens — e apenas eles — passam os dias compondo, criou, em 2019, o Peitaço da Composição.
São quatro dias de acampamento em que mulheres se reúnem para tomar chimarrão, prosear, cantar, tocar e, principalmente, compor. A proposta é que desfrutem do tempo de ócio, longe das obrigações, para elaborarem as próprias músicas — diferentemente do que acontece ano após ano nos festivais, quando geralmente só emprestam sua voz às letras e melodias que saíram da cabeça dos homens.
— Por que as mulheres não compõem? Por que estão sempre no lugar de intérpretes, raramente de instrumentistas? Mesmo as cantoras estão em quantidade muito menor do que os homens nos festivais nativistas. Então, em 2019, eu brinquei: “Vamos fazer uma Barranca feminina”. A ideia é tirar os bloqueios que impedem as mulheres de compor. Inclusive eu, porque não componho — diz Shana.
Com dois anos pulados por causa da pandemia, o Peitaço teve sua segunda edição entre os dias 21 e 24 de julho. No show de sábado, 23, a plateia é formada pela antiga e pela nova geração da música nativista. Estão ali cantoras com longa trajetória em festivais, como Nair Teresinha, 66 anos, Fátima Gimenez, 68, Loma Pereira, 68, e Oristela Alves, 67, além das novatas, como a flautista Charlise Bandeira, 35, a cantora Susane Paz, 31, a violinista Clarissa Ferreira, 35, a violonista Ana Matielo, 25, e a promessa Maria Alice Rosa da Silva, 17 anos, que já participou do The Voice Kids.
Trajando palas e botas, sentam-se em cadeiras de praia para assistir às colegas enquanto esperam sua vez de subir ao palco. Algumas bebem vinho, outras fumam cigarro. São incitadas a não se dispersarem pelo acampamento, permanecendo no galpão ao longo de todas as apresentações.
– Olha aqui, ó: as que já cantaram, façam o favor de ver as coleguinhas cantar – pede, ao microfone, Oristela Alves, que faz as honras da noite.
Não há prêmios, nem a melhor a ser escolhida. Outra regra do festival é não estimular a competição entre as mulheres, uma característica que costuma perseguir a figura feminina.
O exercício da composição
Quando Shana contou que criaria um festival nos moldes da Barranca, ouviu de alguns homens que a escolha era arriscada. A justificativa é a mesma dada para que as mulheres não participem do tradicional acampamento às margens do Rio Uruguai, realizado desde 1972 em São Borja. Todas fundamentadas em estereótipos.
— Bah, que coragem! Vai dar fofoca certo, vai dar briga certo — ela chegou a ouvir.
Outro motivo para que a Barranca seja exclusiva para os homens é que, por ser no meio do mato, não teria infraestrutura adequada para receber as companheiras. Na Fazenda São Francisco do Pinhal, as mulheres ficam acampadas em barracas armadas debaixo de lonas. Dividem um único banheiro de um quiosque e comem as refeições de mulheres contratadas para fazer almoço e jantar. Podem levar os filhos, que ficam aos cuidados de outras mulheres também destinadas ao serviço. A ideia é que as artistas dediquem todos os dias à música.
Mas há espaço para papos profundos. Na manhã de sábado, um grupo debatia a vida de Anita Garibaldi, heroína da Revolução Farroupilha, enquanto tomava café e comia pão com presunto e queijo.
— Ela era uma mulher xucra que não queria ser mandada por homem — diz uma participante do Peitaço.
— A Anita deixou o marido e foi lutar com o Giuseppe Garibaldi, é isso? A minha cunhada é do lar. Já eu sou do mundo — afirma outra.
— Eu também sou borboleta — conclui uma terceira.
É um momento em que dividem dilemas e pensam sobre o rumo de suas próprias vidas.
— Acordo de manhã e ouço as gurias conversando: “Bah, passamos a noite fazendo terapia”. Elas conversam sobre o mundo, sobre o que sentem. Acho que o processo criativo tem a ver com isso, com terapia. Só no momento em que a gente se sentir livre é que vamos conseguir compor — diz Shana.
Não é apenas um camping onde passam horas a esmo, sorvendo mate e arranhando o violão. Elas estão ali para aprender. Na tarde de sábado, formam uma roda no galpão para assistir à oficina sobre criação de canções ministrada pela professora Isabel Nogueira, do curso de Música Popular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Não se fala de técnica, de arranjos, mas sobre o processo criativo que leva a uma música, a uma poesia, a um livro.
— Não vai chegar o dia em que estaremos perfeitas, maravilhosas, com tempo de sobra, e aí falaremos: “Agora eu posso compor”. Não é assim. A gente vai fazer como a gente está, do jeito que dá — diz Isabel.
Ela pede que as mulheres fechem os olhos e recordem de músicas que, quando ouviram pela primeira vez, tiveram a certeza de que seriam cantoras e instrumentistas. Uma fala de Cuitelinho, de Paulo Vanzolini, gravada por Nara Leão. Filha do compositor missioneiro Noel Guarany, Laura Guarany, 40 anos, cita Potro Sem Dono, de autoria do pai.
— Uma ideia de liberdade — explica Laura.
De óculos de sol no galpão escuro, Fátima Gimenez começa a cantar Cinderela, de Adelino Moreira, popularizada por Angela Maria.
Cinderela, eu sou
Cinderela
E o meu príncipe encantado
Vai chegar
— Ai, que horror — diz, baixinho, Nair Teresinha.
Não é uma reprovação à performance da colega, mas uma recusa à ideia de esperar pelo homem que finalmente vai surgir para completar a vida de uma mulher.
Isabel fustiga as alunas.
— Temos muitas mulheres cantando e muitos homens compondo. E isso instaura uma visão de mundo masculina na música, o que invalida a visão da mulher. A gente precisa encontrar nosso jeito de compor e se acostumar com o estranhamento que isso causa — diz ela, que também é produtora e compositora.
Fala que é importante que a mulheres escrevam todos os dias. Que encontrem tempo para colocar as palavras no papel, que façam disso um compromisso. Se necessário, que olhem para a lista do supermercado e imagem uma canção.
— Três quilos de farinhaaa/ Três quilos de sabããão — canta Charlise Bandeira, arrancando risadas.
Poucas entre muitos
Munidas de papel, caneta, violão e bombo leguero, elas se espalham pelo acampamento para finalizar as canções que serão apresentadas no espetáculo. Se quiserem, poderão inscrever essas músicas nos festivais que dão prêmios, como a Califórnia da Canção, a Coxilha Nativista e o Carijo da Canção Gaúcha, embora saibam que as chances de serem selecionadas são baixas. Existem barreiras para isso: sua visão de mundo foge do padrão desses eventos tradicionais, nos quais grande parte das composições fala sobre campo e gado.
— Não tem a ver com a nossa capacidade. O problema é que essas músicas incríveis que estamos criando não entram nos festivais, não têm o padrão dos festivais, que são focados no universo campeiro, na lida campeira — diz Clarissa Ferreira, também pesquisadora e autora do livro Gauchismo Líquido: Reflexões Contemporâneas sobre a Cultura do Rio Grande do Sul (2022).
Para Charlise Bandeira, uma das únicas instrumentistas mulheres a participar dos festivais, as letras escritas por elas acabam gerando estranheza aos ouvidos de uma maioria masculina:
— Os avaliadores desses festivais são, na maioria, homens, e eles não entendem a escrita da mulher. E aí nossa música não passa. Além do mais, os autores de composições não chamam as mulheres para interpretar suas músicas. Acham que a composição é muito campeira para uma mulher cantar.
Primeira cantora solo a participar da Califórnia da Canção, em 1971, Nair Teresinha é a prova da revolução que o Peitaço pretende causar: só foi compor uma música quase 50 anos após entrar para a história da música regionalista local. Agora, deseja lançar seu trabalho nas plataformas digitais.
— Eu era simplesmente uma intérprete. Foi a partir do primeiro Peitaço que consegui fazer minhas músicas. Fiz algumas durante a pandemia, mas não lancei. Tenho vontade de lançar em plataformas digitais. Festivais são complicados, só selecionam quem compõe há anos. Não dá para ficar esperando até que alguém decida dar uma chance para a gente subir no palco com nossa música — afirma.
Na derradeira apresentação de sábado à noite, finalmente ouvem-se as composições. Elas tiveram de se nortear pelos temas que foram dados a cada grupo no dia anterior, palavras que remetem ao passado do Rio Grande do Sul e à vida no campo, como “guerra”, “raízes” e “bandeira”, e outras que convidam a expressarem emoções, como “lua”, “tristeza”, “ternura”.
Não se ouvem músicas que versam sobre os filhos, o amor, o homem que vai chegar. São canções que falam delas, de quem são, do que sentem, de quem desejam se tornar. Algumas invocando a ancestralidade, como Filhas da Terra, com letra de Adriana Sperandir, Lizzi Barbosa, Loma Pereira, Márcia Freitas e Nair Teresinha:
Açorianas, rendeiras
Filhas da terra, parteiras
Herdeiras da ginga, rainhas
Magias de benzedeira
Algumas mais comportadas, como Soneto de Alma e Lua, com letra de Fátima Gimenez, Laura Guarany, Bianca Flores e Anne Augusta:
Sou uma mulher
gaúcha e latina
Minha voz é um instrumento
de minh’alma feminina
Outras mais debochadas, como Abya Yala, com letra de Clarissa Ferreira, Ana Matielo
e Brenda Billmann, que expande a figura da mulher para além da idealizada no cancioneiro gaúcho.
Pachamama
Abyayala
As bruxa veia
e as viada
as cadela e as vacas
chinaredo de alpargata
Ao fim do espetáculo, já se veem várias garrafas de vinho vazias ao chão. Shana vai de um lado a outro do galpão certificando-se de que tudo corre bem. Ora toma goles de cerveja em uma long neck, ora pega no colo a filha Mercedes, de um ano. Sobe no palco, já vazio, e desenrola duas chapas de metal diante da plateia. Em uma das placas estão gravados os nomes das mulheres que participaram da primeira edição do Peitaço e que ajudaram o festival a entrar para a história.
A outra chapa presta uma homenagem à pioneira Berenice Azambuja, morta em 2021, e à
madrinha da festa, Oristela Alves. Shana fala da edição de ano que vem. A mulherada aplaude, grita, dá uivos. Só que as placas, explica ela, infelizmente terão de ser penduradas em outro momento.
— É que a gente esqueceu os pregos.
A relação das músicas apresentadas no 2º Peitaço da Composição
À Beira do Abismo - Letra: Bianca Bergmam e Fernanda Irala. Melodia: Aline Ribas e Bianca Bergmam. Intérpretes: Maria Alice e Bibiana Alves
Abya Yala - Clarissa Ferreira, Ana Matielo, Brenda Billmann, Marília Kosby, Pyetra Hermes, Isabel Nogueira, Paola Mattos, Luiza Gomes, Bibiana Alves
Filha da Terra - Letra e melodia: Adriana Sperandir, Lizzi Barbosa, Loma, Márcia Freitas e Nair Teresinha
Por Fim - Rita Mauch, Maria Helena Anversa, Eunice Pohlmann, Charlise Bandeira
Saudação, Minha Irmã - Susane Paz, Bárbara de Bittencourt, Charlise Bandeira
Soneto de Alma e Lua - Fátima Gimenez, Bianca Flores, Anne Augusta, Laura Guarany, Clarissa Simões Pires. Intérpretes: Fátima Gimenez, Cristina Sorrentino e Maria Alice
Transgrido Tudo - Bianca Rhoden, Shana Müller, Rô Orlandi, Raquel de Borba, Amanda Hausen, Maria Rita Dias