Quando entrou na Faculdade de Música na Universidade Federal de Pelotas, aos 16 anos, Clarissa Ferreira pensava que sua única alternativa profissional era tornar-se violinista de orquestra. Não poderia estar mais errada: imergiu-se na cultura gaúcha e acabou se apaixonando durante a época em que também cursava licenciatura em História.
Hoje doutora em etnomusicologia, sua postura mudou radicalmente - e por isso, lançou recentemente seu primeiro livro para abordar de maneira crítica as construções identitárias e as representações da cultura do Estado na música e na literatura.
Gauchismo Líquido: reflexões contemporâneas sobre a cultura do Rio Grande do Sul (Editora Coragem) pode até ser a estreia de Clarissa nas livrarias, mas não é sua primeira experiência com escrita. Desde 2014 a musicista é autora do blog Gauchismo Líquido, criado para compartilhar suas inquietações com o público.
Na época, a recém-mestre e doutoranda estava passando por processo difícil, já que havia começado a problematizar muita coisa relacionada à cultura gaúcha - meio em que ela se inseria profissionalmente. Seu primeiro texto, tema de um dos destaques do livro, trata justamente sobre como a mulher é representada nas letras.
— Na música gaúcha são homens que escrevem até sobre a visão feminina. E fica muito nos ideais, a prenda com essa domesticidade e fragilidade ou uma versão estereotipada de uma mulher forte, aguerrida — diz ela.
Seis anos depois de sua estreia, o Gauchismo Líquido também virou podcast. Passados dois anos, o blog se tornou livro. Na obra recém-lançada, a compositora reúne 18 textos, alguns inéditos e outros editados, trazendo para o plano material tudo aquilo que vinha falando há tanto tempo.
— Começo a apresentação citando Barbosa Lessa: ele fala que ninguém escreve sobre o Rio Grande do Sul impunemente. É como se houvesse uma responsabilidade em falar sobre isso e ninguém se atreve — conta ela.
Para quem teve a coragem de tomar seu próprio rumo e romper com as tradições, o medo não é uma opção. Entre assuntos polêmicos do livro, Clarissa conta, por exemplo, sobre como o movimento tradicionalista esteve ligado à ditadura militar na época da repressão. Também esmiúça, em Como A Música Gaúcha Perdeu A Oportunidade De Ser O Gênero Mais Ouvido Do Brasil, a relação entre a tchê music, o Movimento Tradicionalista Gaúcho e o sertanejo universitário.
Na música gaúcha, são homens que escrevem sobre a visão feminina.
CLARISSA FERREIRA
Escritora
Apesar de tanta pesquisa, a etnomusicóloga não tem qualquer pretensão de bater o martelo sobre o assunto, mas sim levantar questões para que a sociedade pense em conjunto. Também não descarta mudar de pensamento algum dia, já que, segundo ela, faz parte do processo de construção de conhecimento. Enquanto isso, dá enfoque ao seu disco La Vaca, em financiamento coletivo no Apoie-se e que trata de temas como a degradação do pampa, consumo, meio ambiente e exploração animal junto à questão de gênero. Confira mais, na entrevista com a artista:
Qual era seu plano inicial na faculdade de música e como começou a compor?
A formação musical que eu tive foi muito eurocêntrica, voltada para a música de concerto. Eu pensava como única possibilidade ser violinista de orquestra. A questão da composição veio quando eu me dei conta da falta de mulheres compositoras. Falei: "Bom, vou ter que começar a compor então, falar sobre outras possibilidades de pertencer ao Rio Grande do Sul sem seguir o rigor do tradicionalismo".
Como os teus estudos atravessaram a tua vida pessoal?
A escritora feminista Bell Hooks fala sobre a teoria como uma prática de cura. Sofri com uma criação bem patriarcal em Bagé e sempre questionei esses marcadores sociais que te definem, ou buscam te definir. A partir dessa investigação acadêmica da etnomusicologia consegui me compreender como artista mulher nesse contexto de crises sociais e políticas, entendi a importância de a gente saber a responsabilidade das ideias que estamos reproduzindo enquanto artista. E isso foi uma questão que me pegou muitas vezes quando eu comecei a problematizar a cultura gaúcha: qual era meu lugar dentro desse movimento?
Falar sobre cultura gaúcha não parece simples. Como foi esse processo de divergência para ti?
Tive várias fases e processos de uma dificuldade de me posicionar. Também tive que reinventar meu espaço, foi num período que eu tocava bastante e minha forma de atuar profissionalmente era dentro dessas esferas do tradicionalismo. Hoje já percebo que muitas pessoas se aproximam de mim justamente por essas críticas.
Que conselho daria para outras mulheres que querem seguir pelo mesmo caminho?
Para buscarem referências diversas, que representem de fato as múltiplas possibilidades de pertencer. Também acrescentaria que só ocupar os espaços sem a problematização pode libertar algumas mulheres que estejam dispostas a jogar este jogo, mas não vamos nos conseguir libertar totalmente enquanto existirem padrões que nos definem e condicionam.
- Gauchismo Líquido: reflexões contemporâneas sobre a cultura do Rio Grande do Sul
Editora Coragem
R$ 69,90