Por muito tempo, quase todas as histórias foram contadas pelos homens, inclusive na literatura. Talvez eles ainda sejam maioria — afinal, o machismo também deixa seus frutos no mercado editorial —, mas as histórias narradas por mulheres têm ganhado cada vez mais espaço e leitores.
E também reconhecimento. Na cena gaúcha, Camila Maccari, Clara Corleone e Morgana Kretzmann, três jovens escritoras, tiveram seus trabalhos reconhecidos por importantes prêmios literários.
GZH conversou com as autoras sobre a trajetória na literatura, as dificuldades de ser mulher no meio editorial e os projetos vindouros.
Camila Maccari
A escrita sempre fez parte da vida de Camila Maccari, mas se lá atrás alguém tivesse lhe dito que venceria o Prêmio Açorianos de Literatura da prefeitura de Porto Alegre de 2021, talvez achasse que se tratava de uma piada. Jornalista de formação, ela levou alguns anos para perceber que o que queria fazer com as palavras não era bem reportagem, mas literatura. Outros mais para arregaçar as mangas e decidir iniciar sua jornada como escritora, entrando no mestrado em Escrita Criativa.
Foi durante a formação que escreveu seu primeiro romance, Dias de se Fazer Silêncio (Bestiário), o vencedor do Açorianos de melhor narrativa longa. O livro ficou pronto em 2017, mas também levou mais alguns anos para que Camila decidisse torná-lo público. Estava insegura. O incentivo crucial para a publicação, em 2021, veio do professor Luiz Antonio de Assis Brasil.
— Ele me falou: "Tu não precisas acreditar em ti, não precisas dar esse grande passo ainda. Mas acredita nesse livro. Começa aos poucos, começa por isso" — lembra a gaúcha de 29 anos.
A partir daí, a história de Maria, protagonista de Dias de se Fazer Silêncio, encontrou leitores. A obra de Camila acompanha essa menina que, prestes a completar 12 anos, tem sua infância atravessada pelo luto prévio do irmão caçula, marcado para morrer por conta de uma doença terminal, e pela difícil relação com a mãe. Tudo isso na zona rural de uma cidade do interior, ambiente caro à escritora, que é natural de Sarandi.
A vitória no Açorianos foi a cereja do bolo de toda a jornada de Camila até a publicação do livro, vencendo inseguranças e barreiras muitas vezes impostas por ela no processo de entender que sua história merecia ganhar o mundo. E já nem tanto pelo reconhecimento por ganhar um prêmio, explica, mas porque ele fez com que sua menina Maria encontrasse mais leitores.
— Mais do que a validação pelo prêmio em si, que é totalmente subjetiva e segue critérios subjetivos de corpo de júri, é o burburinho que ele gera e as oportunidades que traz. E acho que é mais isso, mais a aproximação que qualquer deslumbramento, sabe? — explica.
Com essa injeção de gás, a carreira da jornalista que queria ser escritora deve continuar seguindo mais próxima do romance que da reportagem. Um novo livro deve sair, mas, pondera Camila, quando sairá ainda é mistério. Ela só garante que uma hora sai.
— Para escrever esse livro, eu tive que entrar em um mestrado e alguém me dizer: "Olha só, tu tens um prazo". Sigo sendo essa pessoa (risos). Agora tenho até o final do ano para ter uma outra história pronta. Estou voltando a uma história que tenho na minha cabeça há anos e vamos ver se chego a algum lugar com ela.
Clara Corleone
Clara Corleone, 35 anos, atriz, produtora cultural e professora de escrita criativa, há tempos era adepta de um dos gêneros literários mais populares da atualidade: o textão no Facebook. Escrevia quase diariamente na rede social. Olhares, desabafos e reflexões sobre o feminismo e os machismos diários. Mas quando se punha a digitar, não pensava que os textões, sem grandes pretensões para além da rede, virariam livro.
Tampouco que, publicados como o livro O Homem Infelizmente Tem que Acabar — Crônicas, Deboches e Poéticas (Zouk), dois anos após o lançamento, já estariam na quinta impressão e lhe renderiam um Prêmio Minuano de Literatura.
O retorno foi tão positivo que soube que podia mais. Apesar de sempre ter tido mais facilidade para a crônica, ela reconhece, queria escrever um romance, seu gênero literário favorito. E escreveu. Lançou em 2021 Porque Era Ela, Porque Era Eu (L&PM), uma história sobre as relações amorosas no século 21 e algumas posições infelizmente comuns a muitas mulheres dentro delas: a esposa traída e a amante apaixonada, "dois papéis infelizes", como define a escritora.
Que quando lançada a história geraria alguma identificação Clara tinha certeza — de fato gerou, vide os relatos que costuma receber de leitoras —, mas ainda assim a hesitação bateu. Afinal, escrever um romance são "outros quinhentos":
— Não é que no meu primeiro livro eu não estivesse nervosa, mas como eram crônicas que já tinham sido publicadas, mesmo que no Facebook, eu já tinha um certo retorno. O Porque Era Ela, Porque Era Eu ninguém tinha lido. Tinha medo que as pessoas pensassem: "Ah, quem ela pensa que é para escrever um romance antes dos 40?", "Que guria metida!". Para mim foi uma imensa alegria que desde o princípio a aceitação foi muito boa.
Tamanha aceitação que, com menos de um mês desde a publicação, ganhou com a obra o Prêmio Jacarandá de autora revelação. E vai continuar fazendo jus ao status nos próximos projetos dentro da literatura, todos eles tratando de questões relativas ao universo feminino, algo que considera inerente a sua escrita.
O que deve encontrar primeiro o público é um romance ancorado nos micromachismos que acompanham diariamente as existências das mulheres. Violências silenciosas para as quais Clara quer e sente necessidade de chamar atenção.
— É um livro que ainda vai ter suas coisas engraçadas, o sexo, as amigas, mas vai puxar mais pelo lado da violência. Agora, quero falar de machismo. Acho que eu, sendo uma mina branca, heterossexual, cisgênero e oriunda da classe média, já tive espaço suficiente para falar de feminismo. Agora quero tentar tirar aquela ideia de que o homem machista é só o homem que parte para uma violência física ou uma violência sexual. Não. A gente sofre violências pequenininhas todos os dias e é sobre isso que quero falar — diz.
Morgana Kretzmann
Gaúcha radicada em São Paulo, Morgana Kretzmann, 40 anos, não é exatamente uma estreante — apesar de só ter lançado seu primeiro livro, Ao Pó (Patuá), em 2020. Há quase duas décadas escreve poesia — começou quando conheceu Michel Melamed e, conta, perguntou-se: "Poesia pode ser assim?" — e há pelo menos 15 anos compartilha textos em blogs na internet. Atriz de formação, também tem seu trabalho reconhecido por roteiros de dramaturgia e a adaptação de Big Jato, de Xico Sá, para o teatro.
Ou seja, faz tempo que conta histórias, mas só agora conseguiu contá-las na literatura formal. Só agora foi aceita, como ela própria faz questão de frisar.
— O meio literário só abriu suas portas, só meu deu oportunidade, em 2019, através do Eduardo Lacerda (editor da editora Patuá), quando ele publicou o Ao Pó. O livro foi ignorado por algumas outras editoras. Antes disso, o meio literário nunca me deu uma chance ou me acolheu — diz. — Mas não consigo pensar que cheguei ontem, porque trabalho sendo uma contadora de histórias há mais de 20 anos.
Ao Pó pode ter levado alguns nãos, mas, após ganhar sua chance, logo ganhou também o Prêmio São Paulo de Literatura de melhor romance de estreia. O livro acompanha a protagonista Sofia, jovem do interior do interior do Rio Grande do Sul que é abusada sexualmente desde a primeira infância pelo tio e, quando começa a crescer, o vê repetir o crime com a irmã pequena, Aline. Diante disso, decide fugir daquele ambiente e iniciar uma vida nova, deixando para trás a caçula. Mas nunca consegue se livrar dos fantasmas de onde viveu tanta dor.
É uma história dolorosa de ser lida, assim como foi doloroso para Morgana escrevê-la. Foi escrita literalmente entre suor e lágrimas, porque, conta, inúmeras foram as vezes em que se pegou transpirando de nervosismo ou aos prantos ao terminar um capítulo. Isso porque a trama não é totalmente fictícia: Morgana conversou com mulheres vítimas de violência sexual para conseguir escrever sobre isso. Foram encontros que a marcaram muito mais do que as letras impressas em seu livro de estreia.
— Foi difícil conversar com essas mulheres e encontrar uma narrativa literária dentro de tudo que era tão real enquanto eu conversava com elas. Torço para que esse assunto seja mais discutido, porque a vida de uma mulher é completamente destruída quando esse tipo de coisa acontece. Um exemplo é o que Sofia e Aline vivem dentro do livro — afirma.
E tudo isso em um "não lugar", como a escritora chama a localidade rural na qual as personagens vivem, semelhante àquela onde ela própria nasceu, no interior de Tenente Portela. É desses não lugares que ela vai seguir escancarando histórias nos dois próximos livros que está escrevendo, Água Turvo e Safra de Sangue, a serem lançados pela Companhia das Letras.
São thrillers também ambientados em um interior de interior, que também contam a história de mulheres. Esses dois pontos comuns devem permanecer guiando a trajetória de Morgana na literatura, nos próximos dois e em todos os outros livros que vierem, agora que conquistou seu batalhado espaço.
— Tenho essa vontade de contar histórias que não são em centros urbanos. Nada contra quem escreve sobre isso, muito pelo contrário, acho que as histórias desses lugares devem ser contadas, mas eu não venho desse lugar. Eu venho de um lugar lá na fronteira com a Argentina, uma terra de chão batido, que não é uma cidade, é uma localidade rural. Um não lugar. Sempre me encantei pelas histórias que aconteciam de verdade nessas localidades, sempre achei que tinha algo de poético nas histórias que acontecem nesses lugares, onde parece que pouca coisa acontece mas muita coisa acontece — explica a autora.