A cultura musical no Rio Grande do Sul seria outra sem a batuta do produtor Ayrton dos Anjos, famoso no meio cultural como Patineti. Radialista, organizador de festas e festivais, vendedor de discos, representante comercial de gravadoras e, finalmente, um dos produtores fonográficos mais requisitados do Estado, Patineti colocou no mapa artistas de espectros tão diversos como Bebeto Alves e Renato Borghetti. Também organizou shows e temporadas que visavam a fincar pontas de lança para a conquista do centro do país pela música feita no Rio Grande do Sul.
Essa trajetória de mais de meio século de febril atividade na Cultura do Estado é recuperada na biografia Ayrton Patineti dos Anjos, de autoria dos jornalistas Márcio Pinheiro e Roger Lerina, que tem lançamento nesta quarta-feira, às 18h30min, no Chalé da Praça XV, no centro de Porto Alegre.
Escrever um livro sobre Patineti era uma ideia que já circulava há anos, mas que não saía da projeção devido à própria natureza ebuliente do personagem. Se existe uma pessoa para quem as expressões "uma figura" e "um personagem" foram inventadas, este é Patineti – apelido dado pela amiga Elis Regina (1945–1982), a quem ele conheceu ainda no início da carreira e por quem diz ter sido apaixonado a vida toda. Elétrico, impulsivo, falando na velocidade dos antigos LPs de 45 rotações, Patineti esteve em toda parte, conheceu todo mundo e é um grande contador de causos, mas os narra misturando de modo indiscriminado passado e presente, embaralhando dados, anos, marcas cronológicas.
Nascido e criado em Porto Alegre, boêmio, citadino a ponto de não diferenciar os dois lados de um cavalo, fã do rock americano comercial dos anos 1950, de Pat Boone e Johnnie Ray, Patineti faria também seu nome como produtor dos expoentes do tradicionalismo. Também seria o responsável por cunhar a “MPG” de caráter mais urbano. A tarefa de perfilar tal dínamo já havia sido assumida por outros amigos do personagem, como o músico e escritor Jerônimo Jardim e os jornalistas Juarez Fonseca e Timóteo Lopes, em iniciativas mais tarde interrompidas.
– O Jerônimo chegou a escrever umas 30 páginas. Tenho ainda, são lindas, mas aquele cara ali que ele estava descrevendo não tinha nada a ver comigo, o texto era bonito demais pra mim, eu sou um chinelão. O Timóteo a gente foi com um gravador para Farol de Santa Marta com a ideia de gravar lá minhas entrevistas e trazer o livro pronto. Chegou no fim eu comentei: "Tu notou que a gente tá aqui bebendo há três dias e eu ainda não saí da história do meu pai?" – recorda o produtor.
O pai de Patineti foi também um personagem ele próprio. Com o nome improvável de Arfogoceano, foi engenheiro, construtor de barcos e campeão brasileiro de vela na classe Sniper. Morreu em 1946, quando o produtor tinha apenas cinco anos, e ele e a irmã foram criados pela mãe, Ruth.
Biografia múltipla, como o personagem
O livro nasceu de uma aspiração antiga do editor e ex-secretário de Cultura Roque Jacoby. Ao montar sua nova editora, a Plus, voltada para não ficção (que estreou recentemente com a biografia de Júpiter Maçã escrita por Cristiano Bastos e Pedro Brandt), Jacoby formou um conselho curador para o qual chamou os jornalistas Márcio Pinheiro e Roger Lerina. Já havia então a ideia de lançar a tão tentada e nunca realizada biografia de Patineti, e a tarefa acabou entregue aos dois, que, além de interessados na crônica da vida cultural, também conheciam bem, há muitos anos, o próprio Patineti.
A personalidade múltipla do biografado se repete na estrutura do livro, dividido em quatro partes. Na primeira, Márcio Pinheiro narra a vida de Patineti do nascimento até a metade dos anos 1960. Lerina, na segunda parte, assume a biografia e a conduz a partir dos anos 1970. Uma terceira parte reúne depoimentos de amigos, e uma quarta, material adicional em que Patineti fala, na primeira pessoa, de suas várias parcerias.
– Queríamos escrever um texto apenas, mas, durante as entrevistas, o estilo fragmentado e caótico do nosso perfilado começou a mostrar que seria difícil seguir uma ordem cronológica, ou qualquer ordem. O Patineti inventou o hiperllink, ele não consegue concluir uma história sem abrir uma nova aba e mais outra. E decidimos então dividir o livro de acorco com o nosso perfil, também. O Márcio Pinheiro é mais obsessivo com datas e dados, coisa que o Patineti não é. E eu compreendo mais esse lado de “contador de causos” sem compromisso. Acho que isso acabou atendendo mais às nossas inclinações. – comenta Lerina.