Em 1971, surgia pelas bandas de Uruguaiana o festival que mudaria a realidade da música regionalista do Rio Grande do Sul: a Califórnia da Canção Nativa. Realizado pelo CTG Sinuelo do Pago, há meio século, o evento ainda era discreto, mas foi ganhando fôlego com o passar do tempo, moldando o mercado gaúcho e se tornando uma grande fábrica de talentos.
Aberta ao público, a 43ª edição da Califórnia da Canção Nativa ocorre na concha acústica do Parque Dom Pedro II, o Parcão de Uruguaiana, entre esta sexta (17) e domingo (19), sempre às 20h.
A Calhandra de Ouro, troféu dado à melhor canção do festival, tornou-se objeto de desejo dos artistas do Estado. Reflexão, de autoria de Júlio Machado da Silva Filho (música) e de Colmar Duarte (letra), interpretada pelo grupo Os Marupiaras, com o pianista Antônio Carlos Souza como convidado, foi a música que abriu as portas para uma série de trabalhos que se tornariam populares no solo gaúcho — e também fora dele.
De acordo com o jornalista Juarez Fonseca, que foi incumbido por Zero Hora de cobrir o festival a partir de sua quarta edição, a atração foi inspirada no tradicional Festival Nacional de Folclore de Cosquín, da Argentina, e foi responsável por apresentar ao público os principais artistas da música regional do Rio Grande do Sul.
— Nenhum outro festival revelou tantos nomes como a Califórnia e ela foi o ponto de partida para dezenas de festivais que foram pipocando pelo Estado a partir dos anos 1970 — explica o colunista de GZH e Zero Hora.
Apesar de já ter uma carreira sólida antes da Califórnia da Canção Nativa, Telmo de Lima Freitas se tornou um dos principais expoentes do evento após vencê-lo em 1979 com a música Esquilador. Foi a partir do festival que ele ganhou projeção, assim como diversos outros artistas do Rio Grande do Sul, como Elton Saldanha, João de Almeida Neto, Leopoldo Rassier, Mário Barbará, Luiz Carlos Borges, Mauro Morais, a cantora Loma, Francisco Alves e o seu pai, Kenelmo Alves, que são os autores de uma das músicas mais populares da história do encontro: Recuerdos da 28, que não venceu.
— Recuerdos da 28 é cantada hoje por muitos grupos aqui do Estado e é um dos grandes sucessos da Califórnia, apesar de não ter ganho nada, ficando só entre as 12 classificadas para a final — relembra Fonseca.
Já César Passarinho virou o símbolo da Califórnia, sendo intérprete de quatro músicas vencedoras da Calhandra de Ouro, entre elas Guri e Negro da Gaita, além de diversos troféus por conta de seus desempenhos em cima do palco. Oriundo de bandinhas que tocavam nos bailes de Uruguaiana, foi na Califórnia da Canção Nativa que ele foi elevado ao papel de cantor nativista, que abraçou e, assim, construiu a sua elogiada carreira.
Tempos dourados
Juarez Fonseca relembra que, com o seu sucesso crescente, a Califórnia da Canção Nativa foi despertando um forte interesse em todo o Estado e, assim, artistas que não eram necessariamente tradicionalistas começaram a enviar as suas músicas para o festival, sendo selecionadas por conta da qualidade dos trabalhos.
Com a criação de três linhas, que por último atendiam pelos nomes de campeira, manifestação rio-grandense e livre, artistas como Marco Aurélio Vasconcellos, Luiz Coronel, o Grupo Pentagrama, Apparício Silva Rillo, Mário Barbará e Sérgio Napp, estes dois responsáveis por Desgarrados, uma das músicas mais gravadas do festival, puderam integrar o evento.
— Se eu fosse fazer um disco do cânone da música regional do Rio Grande do Sul, de 10 músicas, oito seriam da Califórnia. Ficaram marcadas, até hoje são cantadas e lembradas — reforça Fonseca.
O festival começou no Cine Pampa de Uruguaiana, que hoje é o Teatro Municipal Rosalina Pandolfo Lisboa, e lá aconteceu um dos shows mais importantes da Califórnia da Canção: Atahualpa Yupanqui, icônico nome do folclore argentino. Mas o espaço ficou pequeno, na década de 1980, e ele passou para o Parque de Exposições de Uruguaiana, conhecido como Pastoril, local aberto onde aconteciam provas campeiras e leilões de bois. Lá, chegou a ter 50 mil pessoas em uma noite.
— A partir da Califórnia e, depois, de outros festivais, criou-se um mercado para a música regional do Rio Grande do Sul. E esse mercado, até hoje, é forte. O mercado não foi somente para a música, mas aumentou a venda de erva-mate, de roupa gaudéria, de pilcha, movimentando a economia do Rio Grande do Sul de maneira bem expressiva — recorda Fonseca.