Jayme Caetano Braun é o brasedo que ficou e aceso permaneceu. Cem anos após seu nascimento (completados na próxima terça-feira, 30/1), ele segue lembrado como um dos maiores artistas da história do Rio Grande do Sul. Era um escultor de palavras, que versava sobre a cultura terrunha da região das Missões e do Rio Grande do Sul, seja no palco ou longe dele. Também era um contestador, que não deixava de declamar sua indignação com a injustiça.
Para marcar o centenário do poeta e pajador, há eventos e celebrações previstas não só para esta terça, mas também ao longo do ano, o que inclui lançamentos de biografia e documentário (veja a lista aqui). Em dezembro, o governo estadual publicou um decreto que institui o ano de 2024 como o Centenário de Jayme Caetano Braun.
Nascido no dia 30 de janeiro de 1924, em Bossoroca (que pertencia, naquela época, à São Luiz Gonzaga), Jayme aprendeu a arte de improvisar versos logo na infância, influenciado pela família Ramos, da parte de sua mãe, Euclides. Desde cedo conviveu com a vida rural. Ele trabalhou no campo e em tropeada, e essas vivências se integraram a sua veia poética. Só que Jayme sonhava em cursar Medicina. Porém, não concluiu o Ensino Médio e se tornou um autodidata – era um especialista em remédios caseiros e chegou a trabalhar como auxiliar de farmácia.
Entre as ocupações que exerceu, estão dono de bolicho, servidor público, diretor da Biblioteca Pública do Estado e radialista – a partir de 1973, ficou 15 anos no ar no programa Brasil Grande do Sul, na Rádio Guaíba, onde se notabilizou por fazer comentários em versos improvisados. Com sagacidade e humor, rimava sobre tudo: dupla Gre-Nal, Guerra Fria e até o glamour do Festival de Cinema de Gramado. Foi com os versos que Jayme fez e escreveu história em seus 75 anos de vida – ele morreu no dia 8 de julho de 1999, por conta de complicações cardiovasculares.
Os primeiros poemas do autor saíram no jornal A Notícia, de São Luiz Gonzaga, nos anos 1940. Lançou o primeiro livro, Galpão da Estância, em 1954, que já trazia versos de temática campeira. Ao longo de sua trajetória e postumamente, ele acumularia 10 obras publicadas.
Os versos de Jayme também foram declamados em palanques políticos. Ele participou das campanhas de seu primo e padrinho político, Ruy Ramos, além de nomes como Leonel Brizola, João Goulart e Egídio Michaelsen. Foi um dos fundadores da Estância da Poesia Crioula (EPC), em 1957, grupo de poetas tradicionalistas atuantes até hoje. Para o escritor e presidente da EPC, Cândido Brasil, Jayme é o símbolo máximo da poesia gaúcha.
Desde 2012, Cândido prepara uma biografia do artista, que está prevista para ser lançada na Semana Farroupilha, em setembro. Intitulado, a princípio, Jayme Caetano Braun – O Payador Missioneiro, o livro deverá abordar vida e obra de Jayme, o que inclui sua mudança para Porto Alegre. Foi na Capital, aponta o autor, que o trovador se encontrou com grandes nomes da poesia e se tornou um expoente.
Cândido ressalta que Jayme era trovador na juventude. Escrevia essencialmente em sextilhas, tanto que a maioria dos poemas de seu livro de estreia é composta pelas estrofes de seis versos.
– Jayme tinha o dom da métrica. Quando se lê os poemas dele, não se vê verso quebrado. Todos os versos são perfeitos – avalia. – Ele se diferenciava dos demais poetas porque improvisava sobre qualquer tema e objeto. Essa autenticidade dele foi o que o tornou o maior payador do Brasil, além de ser o mais gauchesco dos poetas do Rio Grande do Sul.
O poeta missioneiro teria sido apresentado à pajada, ou payada, no original em espanhol, em 1958, pelo poeta e pajador uruguaio Sandálio Santos. Trata-se de uma forma de poesia improvisada (ou não), costumeiramente com estrofes de 10 versos e acompanhamento do violão. Expressão cultural forte em países como Argentina e Uruguai, o estilo se tornou o foco do artista.
Segundo o jornalista, compositor e pajador Paulo de Freitas Mendonça, o maior legado de Jayme foi ter resgatado a arte da pajada no Estado, que até pouco tempo atrás não se sabia ser tradicional no Rio Grande do Sul. Autor do livro Pajador do Brasil – Estudo sobre a Poesia Oral Improvisada, ele argumenta que estudos comprovam registros de improvisação em décima com acompanhamento de instrumentos de cordas no Decênio Farroupilha (1835-1845).
– Esse estilo é vigente nos Açores, de onde deve ter vindo com os povoadores pioneiros – atesta Mendonça. – Jayme foi o primeiro pajador urbano profissional que soube representar muito bem o pajador histórico. Como ele mesmo disse em Payada das Missões: “No templo do pampa imenso/ berço do ancestral andejo, que peleava por um beijo e morria por um lenço”.
Como pajador, passou a gravar discos. Foram 15, entre trabalhos de estúdio e resgate de acervo. Entre seus poemas mais declamados pelos poetas regionalistas estão clássicos como Bochincho, Tio Anastácio e Galo de Rinha.
Radicado no Rio Grande do Sul desde os anos 1980, o violonista argentino Lucio Yanel foi parceiro musical de Jayme. De acordo com o hermano, os dois compartilhavam de um mesmo sentimento: o linguajar pampeano.
– A gente se conquistou pela arte. Quando nos encontrávamos, era o que fazíamos. Ele com suas poesias e pajadas, eu com a guitarra. Tomávamos mate, nos divertíamos. Sempre sonhando com um país melhor. Tanto argentino como brasileiro – recorda Yanel.
Outro parceiro de Jayme era Luiz Marenco. O cantor e compositor ganhou prêmios em festivais com o poeta missioneiro, como o primeiro Chamamento do Pampa de Passo Fundo, em 1990. O disco de estreia do músico se chama Luiz Marenco Canta Jayme Caetano Braun, em que trabalha com 12 letras do pajador. O álbum foi indicado para o Prêmio Sharp.
Marenco afirma que sua “faculdade musical” foi ouvir Jayme e Noel Guarany. Era o tipo de composição com que mais se identificava. Foi o que lhe deu vontade de começar a cantar. E era com quem queria compor. Ele conseguiu o telefone do ídolo e o procurou. O missioneiro recebeu Marenco de braços abertos em sua casa. No dia em que se conheceram, o novato ganhou dois poemas: Destinos e Extraviado.
– Eu não existia, e ele me deu a primeira chance – resume.
Para Marenco, há um antes e depois de Jayme e Noel na música regional gaúcha:
– Jayme surgiu cantando a verdade do povo daqui. Veio aquele louco com aquela poesia profunda, que faz tu enxergar as coisas. Reescreveu a história da música gaúcha. Para nascer outro Jayme, só se nascesse outro Rio Grande do Sul.
Ao lado dos amigos Noel Guarany, Cenair Maicá e Pedro Ortaça, Jayme é considerado um dos “Troncos Missioneiros”. O título foi atribuído aos quatro com o disco Troncos Missioneiros (1988), pela Usa Discos. Em comum, o quarteto exaltava a cultura das missões em suas obras, propondo uma nova identidade na música regionalista, trazendo críticas sociais e valorizando a história do Estado. Para Ortaça, o amigo era infinito:
– Jayme marcou caminho. Andou e contestou. Tinha um conhecimento profundo da história do mundo, e o utilizava em seus improvisos. Fazia pajada criticando tanto a política nacional como a política do mundo, mas elogiava também aqueles que mereciam.
A declamadora e ativista cultural Liliana Cardoso também admira a veia contestadora de Jayme. A obra do poeta faz parte de sua vida desde a infância. Qualquer declamador passa pelo artista missioneiro, como ela enfatiza. O verso de Jayme é libertador para Liliana.
– Ele foi transformador – define. – Através da rima e da pajada, Jayme conseguia contestar a forma antidemocrática com que era tratado nosso país. Conseguia trazer respostas para a ditadura, falava da liberdade do povo.
Alguns poemas de Jayme criticavam a ditadura e a repressão, como relata Cândido. Em Identidade, por exemplo, o payador diz: “E há os que não querem que eu cante/ e há os que não gostam que eu fale/ e há os que querem que eu me cale/ ante o arbítrio constante/ temem que eu force a minguante/ transformar-se em lua cheia/ ou faça que o povo creia/ que existe meia verdade/ e que a pura liberdade/ só merece quem peleia!”. Já em Payada do Safenado, Jayme destila: “Se eu faço essa confissão/ Aqui da terra farrapa/ Se me arrancarem do mapa/ Fica um buraco no chão/ Porque eu calcei o garrão/ Pra um tiro de volta e meia/ Não me assusta cara feia/ Tão pouco falta vergonha/ E duvido que alguém ponha/ uma ideia na cadeia”.
O escultor Vinícius Ribeiro sublinha que o pajador dava voz às minorias. Ele trabalhou em dois monumentos dedicados ao artista: um localizado em São Luiz Gonzaga, no Complexo Turístico Cultural Jayme Caetano Braun; o outro em Porto Alegre, que será reinaugurado na terça-feira, no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho. Em seu trabalho de criação, Ribeiro se aprofundou na história do artista. Ele divide o legado de Jayme em três partes:
– Primeiro ele cantou as coisas do pago, o dia a dia do homem simples do campo. Depois, foi a voz do excluído que estava ao nosso lado e não víamos, como o índio e seus balaios na beira da estrada, o negro esquecido, sem quase nada. E, por fim, passou a valorizar a reflexão. Ele usou sua arte para encontrar as respostas do sentido da vida, do tempo, da liberdade, que no fundo são perguntas de todos nós. Nessa fase ele passou a ser universal. Nem todo artista alcança essa etapa.
A jornalista e documentarista Karin Schmidt realça que uma das principais contribuições do artista é a divulgação da cultura terrunha. Autora de um documentário de curta-metragem sobre Jayme, lançado em 2018 e intitulado Jayme Caetano Braun – Payador Missioneiro, ela prepara um novo filme sobre o artista. Previsto para ser finalizado até junho, com lançamento ainda neste ano, a nova produção deve reunir depoimentos de amigos e familiares de Jayme, além de artistas das Missões.
– Ele era de uma inteligência, mesmo quando ele falava brincando tinha um embasamento. A cultura terrunha é o principal legado do Jayme, algo que sempre esteve presente no coração e nos versos dele – salienta Karin.
O cantor e compositor Jorge Guedes corrobora:
– Para mim, a maior contribuição dele foi louvar o legado antigo das Missões, entregando sua genialidade instintiva de fazer versos para essa causa. Tinha uma exuberante qualidade literária e nunca perdeu o vínculo com sua terra.
Liliana adiciona que a obra de Jayme é a melhor introdução possível ao Estado:
– Se hoje chegar um estrangeiro para conhecer o Rio Grande do Sul, que não faz ideia do que é nossa identidade, pega um livro da poética do Jayme e já é meio caminho. Os versos dele são uma aula de história e conhecimento do que temos como identidade de um povo.
O pajador no rap
Hoje, Jayme segue inspirando. A pajada resiste, com artistas que lutam para manter essa arte ainda ativa, como Paulo de Freitas Mendonça, José Estivalete, Jadir Oliveira, Pedro Junior da Fontoura, Jadir Filho, Turco Chaves e Elisandro Chaves. Mas o estilo também se entrelaça com outras inspirações.
É o caso do projeto RAPajador, lançado em 2018 por MC Chiquinho Divilas, DJ Hood e o acordeonista Rafael De Boni para promover um encontro de referências musicais que transitem pelo hip-hop e o regionalismo, com a fusão das rimas do rap com os versos da pajada.
Morador de Caxias do Sul, Divilas recorda que a semente do projeto partiu de uma indagação de um produtor, que perguntou se ele conhecia Jayme Caetano Braun. O rapper respondeu que, pelo sobrenome, deveria ser “bruxão” ou parente do Mano Brown. Após algumas risadas, ele pensou em uma frase da música Brixton, Bronx ou Baixada, de O Rappa: “Cada qual com seu James Brown”.
Divilas passou a estudar sobre a vida de Jayme e percebeu que, além do sobrenome soar parecido, o pajador poderia ter muito em comum Mano Brown.
– Ambos são poetas influentes, com base política. Brown foi meu primeiro professor. Nos ensina a ter voz ativa. Jayme era inteligente e gritava contra a injustiça – diz o MC.
Surgiu a música De Brown pra Braun, que mescla a batida eletrônica do boom rap com a milonga e o acordeom típicos da música regionalista gaúcha. “Dos cantos e melodias/ eterna sabedoria/ e distante de sua estância/ de fatos e circunstâncias/ Brown não se acanhou/ a prosa mal começou/ chamou o Bigode Branco/ e criaram o RAPajador”, expõe a letra.
O RAPajador se expandiu para a socioeducação, com o projeto (R).(A).(P). na Socioeducação – RAP, Adolescentes e Pajada. A iniciativa promove palestras, oficinas de rap e pajada, criação de rimas e gravação de músicas junto de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa. No ano passado, o projeto recebeu a menção honrosa na categoria Demandas Complexas ou Coletivas, do Prêmio Conciliar é Legal, na sede do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em Brasília.
– Esse encontro faz refletir sobre a diversidade. Enxergar vários gêneros e ideias, o que nos enriquece enquanto seres humanos – diz Divilas.
Seja em projetos socioeducacionais ou em referências artísticas, a admiração pela vida e obra de Jayme está espraiada pelo Estado e fora dele, já que seu nome batiza ruas, praças, CTGs e até um viaduto de Porto Alegre. Tem até data própria: desde outubro de 2001, a Lei Estadual 11.676 instituiu o 30 de janeiro como o Dia do Pajador Gaúcho.
É como diria Jayme em Payada: “Mas o eterno não morre, porque permaneço vivo”.