Por Vinícius Brum
Músico e escritor, mestre em Literatura pela UFRGS
Em meados dos 1970, ainda um guri, eu gostava de ouvir no comecinho da manhã uma voz meio rouca que vinha de um velho rádio de pilhas. O mundo que me rodeava era o da cidade com seus edifícios e automóveis e gente apressada. Eu era um guri da cidade, mas a paisagem rural, no período de férias escolares pelo menos uma vez por ano era de certa forma meu habitat. Eram-me familiares as lidas, os causos, as traquinagens, os cavalos e os bois. Convivi com a peonada do galpão e desde então aquele universo campeiro povoa minhas andanças, minhas cantigas e minha reflexões.
A voz rouca que vinha do rádio de certa maneira atualizava em mim o descortino daquele universo onírico e mítico que as folgas do colégio permitiam visita. Lembro-me como se neste momento estivesse a ouvir novamente: “Hoje eu acordei cedito, antes mesmo da boieira... Sigo mateando solito...”. Assim ia a voz, no improviso, compondo a crônica dos acontecimentos do dia ou da semana. Os fatos, as notícias eram do cotidiano, mas a forma, a entonação me devolviam ao campo, ainda que o tema do discurso pudesse ser a investida do homem ao espaço sideral. E seguia a voz, agora recitando Aureliano de Figueiredo Pinto: “Por isso que hoje não dormes! Ouviste a voz de ancestrais: – O chimarrão principia! Alerta! O campo vigia! Da meia-noite pro dia, um taura não dorme mais...”.
Devolvido ao campo, eu ouvia a voz dos ancestrais. E assim seguia naquelas manhazinhas junto ao rádio e à solidão do mate. Anos mais tarde, já na Capital, pude conhecer de perto aquela voz e descobri que aquela forma de improvisar em versos chamava-se pajada. E o genial pajador era Jayme Caetano Braun, cria da Bossoroca, nascido em 30 de janeiro de 1924.
A vida correu célere, como é de seu feitio. As transformações do mundo contemporâneo são as mais intensas e velozes já experimentadas pelo ser humano, mas ainda recordo daqueles tempos infantes e me voltam aos sentidos os aromas, os sabores e os matizes da vida rural que se perdeu na estrada poeirenta que vim cruzando.
Agora, cabelos grisalhos e com a fronte rabiscada pelo tempo, penso na poética de Jayme, que cambiou de pago no inverno de 1999, e reflito sobre os tipos de gaúcho arrolados por Domingos Faustino Sarmiento no seu inexcedível Facundo ou Civilização e Barbárie. Entre o “rastreador” (todos os gaúchos do Interior são rastreadores) e o “gaucho malo” (um outlaw, o fora da lei), se me ressaltam o “cantor”, aquele cuja “morada está onde a noite o surpreende; sua fortuna, em seus versos e na sua voz”, e o “vaqueano” que “é um gaúcho grave que conhece palmo a palmo 20 mil léguas quadradas de planícies, bosques e montanhas”. Jayme só não se enquadra no segundo modelo. Se, na reflexão de Sarmiento, todos os gaúchos são rastreadores, Jayme, por sua gauchidade orgulhosa, se encaixa no conceito; cantor, também o era, posto que nos legou em seus versos sua fortuna; e vaqueano, ele mesmo escreveu: “Morre o último pampeano, mas eu vaqueano não morro...”.
Uma abordagem de fôlego sobre sua obra carece de muito mais tempo e espaço, contudo creio que se pode registrar aqui algumas passagens que por certo apontam para a dimensão de sua poética, quer como cancionista, quer como mestre da poesia oral improvisada, a pajada, que no Rio Grande do Sul foi reinventada e consagrada por ele, além de suas atividades como radialista e apresentador de eventos nativistas.
Lembro de uma pequena história que me foi contada por Luiz Carlos Borges, por ocasião da primeira edição do Musicanto Sul-americano de Nativismo, em Santa Rosa, em 1983: Jayme havia sido chamado para apresentar o festival. Ao chegar, foi recebido por Borges, coordenador do evento, que, lhe dando as boas vindas, perguntou se o convidado já estava acomodado e se necessitava de algo. A resposta foi afirmativa para a primeira questão e, em relação à segunda, solicitou o livreto que continha as letras das canções concorrentes. Abancado num canto da pequena secretaria do festival, Jayme mergulhou nos textos do livreto alheio à vertigem dos barulhos que o circundavam. Foram 30 ou 40 minutos de imersão naquela leitura. À noite, quando lhe coube a apresentação das canções concorrentes, o pajador dedicou a cada uma um verso de improviso. Sua capacidade de memória e a beleza dos versos criados por certo andam guardados no encantamento dos que puderam presenciar a magia daquelas noites.
Volto ao começo desta reflexão, aos 1970, e lembro que, nas rodas de música e canto da minha juventude, havia sempre um momento em que um dos nossos recitava estes versos: “Quem visse o Tio Anastácio/ num bolicho de campanha/ golpeando um trago de canha/ oitavado no balcão/ tinha bem logo a impressão/ que aquele mulato sério/ era o Rio Grande gaudério/ fugindo da evolução”. Por isso agora imagino, passados cem anos do seu nascimento, que Jayme Caetano Braun tenha feito pousada na evanescente venda do Bonifácio e continue proseando com aquele negro velho já tordilho, lá onde o tempo flutua entre a ponte e o lajeado.