Foi por acaso que Lucio Yanel mudou a história da música gaúcha. Em meados de 1982, o músico argentino decidiu deixar sua terra natal, que sofria as consequências da derrota na Guerra das Malvinas. Para o violonista, o clima de luto vivido no país praticamente inviabilizava o trabalho como músico, por isso resolveu tentar a vida mais uma vez em São Paulo, onde havia morado anos antes. Às vésperas de partir, um amigo lhe repassou uma pasta de partituras e pediu um favor: que Yanel aproveitasse a viagem e deixasse os papéis na casa de um colega brasileiro, em Passo Fundo. A parada no itinerário, que era para ser rápida, já dura quase 37 anos.
Se não tivesse que entregar as tais partituras, Yanel não seria conhecido hoje como um “divisor de águas” da música regional gaúcha. É assim que violonistas do gabarito de Yamandu Costa o chamam.
— Sem dúvida, o Lucio é um divisor de águas na história do violão no Rio Grande do Sul. E a influência dele vai além do Estado, porque a música do Sul não conhece fronteiras, percorre outras regiões e países próximos. Além disso, por meio de pessoas como eu e o Gabriel Selvage, por exemplo, a musicalidade dele chega também no centro do Brasil — avalia Yamandu.
A amizade entre Yamandu e Yanel começa logo depois que o argentino chega ao Estado. O destinatário das partituras o pai de Yamandu, Algacir Costa (1944–1997), compositor, poeta e músico do conjunto Os Fronteiriços. O futuro prodígio do violão ainda usava fraldas quando viu pela primeira vez o estrangeiro tocar, no sofá de sua casa.
— Yamandu tinha um ano e oito meses e já pegava ele nos braços, no meu colo — relembra Yanel.
Essa e outras histórias estarão no documentário Dois Tempos, que a produtora Doble Chapa acaba de rodar, em uma jornada de 15 dias com os dois músicos circulando em um motor home desde Caxias do Sul, onde Yanel mora atualmente, até Corrientes, na Argentina, província em que nasceu, há 72 anos. O longa-metragem se soma a mais duas homenagens que Yamandu prepara para seu primeiro professor, previstas para o segundo semestre: a reedição do álbum também intitulado Dois Tempos, gravado em duo e editado em 2001; e o lançamento de um disco com registros inéditos da dupla em ação.
— Lucio tem essa característica de ser meio errante, meio cigano. A viagem do filme é uma viagem pelo imaginário do violão pampeano e pela memória afetiva do Lucio. Será um filme sobre pertencimento, sobre raízes e vivências — opina o diretor Pablo Francischelli.
Não é a primeira vez que Francischelli trabalha com Yamandu. O diretor, filho de mãe argentina e pai brasileiro, também dirigiu a série Sete Vidas em Sete Cordas, que foi ao ar originalmente pelo Canal Brasil. O novo projeto está sendo realizado em parceria com o canal Curta!, com produção executiva de Caio Jobim. Ainda não há previsão de data para o lançamento.
— Esse é um projeto muito diferente. É a primeira vez que captamos tanto conteúdo de uma vez só. Estamos preparando o material para o processo de montagem. A partir daí será possível avaliar quais serão nosso próximos passos e pensar em um cronograma — explica Francischelli.
Parceiro musical de Jayme Caetano Braun, Gilberto Monteiro, Luiz Carlos Borges e Luiz Marenco, entre outros, Yanel contribuiu para a consolidação de um movimento da música regional gaúcha que havia se iniciado nos anos 1970, com os grandes festivais. Com seu estilo, ajudou a dar protagonismo ao violão, até então considerado um instrumento de acompanhamento, já que usualmente só a gaita costumava disputar com a voz o primeiro plano dos arranjos.
— Posso dizer que sou um dos propulsores para que este movimento tenha ganhado qualidade. Quando cheguei aqui, já havia corrido pelo mundo, era um profissional. Na questão do violão, tudo era ainda muito amador por aqui. Havia muita coisa por fazer — lembra Yanel.