Por Vinícius Brum
Cancionista, doutorando em Literatura
Ah, o cancionista! Como diz o poeta: aquele que nos empresta sua testa, construindo coisas pra se cantar. O artista que consegue, com suas criações que invariavelmente partem de situações prosaicas e cotidianas, conferir apuro estético às emoções das pessoas. Quem já não se surpreendeu ao ouvir determinada canção: parece que foi feita para mim! Como tão bem já foi cantado: “Certas canções que ouço cabem tão dentro de mim que perguntar carece: como não fui eu que fiz...”. A canção popular, assim como as artes, tem o dom de nos fazer chorar, sorrir, amar, refletir, doer. E ir embora. E permanecer.
Na canção regional produzida no Rio Grande do Sul, destaco, nestas poucas palavras, mais cheias de lágrimas do que de razão, um desses que emprestaram seu engenho e sua arte para construir este cenário de belas e marcantes canções que nos têm feito tão boa companhia. Ele é o grande referencial do estilo que de forma simples convencionou-se chamar de música campeira. Contudo, em se tratando dele, a expressão parece de um reducionismo que refuto e que evito. Telmo de Lima Freitas (1933-2021) é um compositor popular com letras maiúsculas, pois gigante é sua obra que é do tamanho de sua alma, aí sim, campeira. Ele que numa canção se apresenta como capim rasteiro que do nada se criou, e que antes do evento dos festivais nativistas já fazia sucesso popular na voz de José Mendes com Baile de Rancho e O Roubo da Gaita Velha.
Na primeira edição da Califórnia da Canção de Uruguaiana, em 1971, Telmo apresentou uma das mais belas canções surgidas nesses já 50 anos de nativismo, Prece ao Minuano. E seguiu criando clássicos do cancioneiro popular, como Esquilador, Cantiga de Ronda, Defumando Ausências, Lembranças, Resto de Baile, Alma de Galpão, Morena Rosa, Jaguaretês, Piragueiros, Pago Santo e Prenda Minha. Tantas canções que seriam necessárias muitas páginas brancas para listá-las.
O veio inesgotável de sua criação abarcou gêneros variados, milongas, valsas, chotes, bugios, polcas, toadas, e também passeou por um amplo espectro temático no enfoque textual. Sempre buscando refletir sobre as coisas do mundo partindo da sua visão de homem do campo, ainda que, pelas circunstâncias profissionais, tenha vivido a maior parte de sua vida imerso à paisagem urbana. Telmo cantou as lidas rurais, o amor, a terra, as solidões, a sensualidade, a nostalgia. Cantou como peão, como filósofo, como cronista. Pintou paisagens com uma paleta de cores de quem percebe a luz e a sombra, o delírio e a lucidez. Cantou como devoto de suas divindades. Cantou o mar e o rio e suas personagens em seus barcos e canoas. Cantou com alma feminina em Primavera de Sonhos: “...Como foi bom eu conseguir um dia me entregar inteira, redescobrindo aquilo que eu pensava nunca descobrir...”.
Eu o conheci em 1980, na 10ª edição do festival de Uruguaiana. Aquele ambiente da famosa Cidade de Lona era hipnótico. Um transe coletivo. Cheiros de mato, de churrasco, de poeira, misturados com cantorias a madrugadas altas, frenesi de cordeona e violões. Almas em desalinho, corações procurantes: um povo mergulhado em seu pertencimento que é sempre uma busca e uma invenção. O acampamento do Telmo de Lima Freitas era uma das atrações daquela cidade etérea.
Os primeiros anos da década de 1980 viram eclodir festivais em inúmeras cidades do Rio Grande do Sul, consolidando o fenômeno cultural que se convencionou chamar de Movimento Nativista. Telmo foi protagonista neste meio século que já nos separa daquele instante inaugural na Fronteira Oeste.
Depois de haver andado pelo mundo e ter podido conhecer diversas culturas, depois de ter visitado os fundões deste Brasil, vivido em meio a índios e caboclos, depois de tanta cantoria, o nosso bardo ergueu um rancho em Cachoerinha, na Região Metropolitana. Lá, construiu um galpão que se tornou um templo. Todos os que por lá passaram, e foram muitos, por certo jamais poderão apagar da memória aquele lugar de levitação telúrica. Ali, Telmo parecia uma entidade de chão batido e fumaça. Bem antes do “ô de casa”, o visitante já podia sentir o seu abraço que era longo, que era de irmão, mas que também era de pai e era de filho.
Levando no coração sua São Borja missioneira, encilhou novamente o seu “sebruno” com alma de gaiteiro e se largou para o campo intangível, vasto de verde e de azul. Aqui seguiremos cantando, pois é certo que ele segue também. “Ao longe, as garças de plumagens brancas espreitam o voo do capim rasteiro que do nada se criou.” Que seja o céu, para suas asas, tão imenso como nos foi a sua alma de galpão. Até qualquer dia, tio Telmo!