Não faltaram clássicos para o cantor e compositor Telmo de Lima Freitas ao longo de 88 anos de vida. O artista natural de São Borja, que se despediu na quinta-feira (18), colecionou pérolas da música regional gaúcha em seu repertório: Prece ao Minuano, Cantiga de Ronda, Baile de Rancho, Nesga da Noite, Morena Rosa, Lembranças, Prenda Minha, entre outros exemplos. Contudo, O Esquilador é inegavelmente seu maior êxito.
Em 2017, a convite da repórter Joana Colussi, de GZH, Telmo cantou O Esquilador. A reportagem mostrava o caminho da lã, desde a criação de ovinos. A tosquia (esquila) é a primeira etapa. Então, surgiu a ideia de gravar com o Telmo para que ele apresentasse a música, um símbolo da esquila.
Na ocasião, fazia quase um ano e meio que o cantor não pegava o violão. A tristeza após a morte do grande amigo Reynaldo Goulart Correia, de São Borja, o impedia de cantar e tocar. Foi a pedido da reportagem que o artista retomou sua paixão. Assista:
Já em 2018, Telmo ganhou a companhia de Luiz Carlos Borges e de seu filho Kiko Freitas para interpretar O Esquilador. A reportagem abordava o show e disco de Borges cantando o repertório do amigo.
No imaginário da Fronteira
Vencedora da 9ª Califórnia da Canção Nativa, em Uruguaiana, em 1979, a canção fala sobre êxodo rural pelo ponto de vista de um esquilador de ovelhas (atividade que consiste em tosquiar os animais para remover a lã). Natural de Itaqui, município da Fronteira Oeste onde a esquila é uma prática comum, o cantor e colunista de GZH César Oliveira destaca que essa abordagem de Telmo foi muito original.
— Haviam pessoas que viviam exclusivamente das esquilas. Era um profissional muito importante e procurado na região. Como havia uma safra da esquila, aquilo se tornou peculiar na vida de todo mundo da Fronteira. Ele conseguiu traduzir isso como ninguém. Essas coisas que para uns podem ser simples, como a função do esquilador, mas que não é para o povo da Fronteira. Há uma questão tribal, que é de suma importância. Te leva para um passado em que a formação das esquilas fizeram parte da construção de inúmeras famílias — contextualiza César.
Segundo o cantor, que faz dupla com Rogério Melo, Telmo conseguiu com O Esquilador realizar a projeção de inúmeras famílias da Fronteira:
— A esquila em si era uma festa como a da colheita, embora fosse um trabalho nas estâncias. Ano a ano acontecia uma temporada. Fazia parte do calendário do povo da Fronteira. Chegavam a ter 12 esquiladores trabalhando com centenas de ovelhas, de 30 a 60 dias. Telmo conseguiu abordar esse tema de forma singular.
Ao retratar um personagem típico do calendário de vida na Fronteira, Telmo fez história. César observa que o cantor teve êxito tanto na melodia quanto na letra.
— O Esquilador está entre o seleto grupo de hinos do Rio Grande do Sul. Telmo é um homem que obviamente não era deste tempo de hoje. Ele viveu uma época em que construiu o seu caráter folclórico e o preservou, tentando transmiti-lo a juventude. Sempre respeitando as origens do regionalismo do nosso Estado, buscando pela raiz esse ser humano muito tribal — analisa César.
O cantor Elton Saldanha observa que O Esquilador também traz uma reflexão social:
— Trata de uma profissão em extinção e a letra trata ainda do êxodo rural, certamente o poeta previu que a ilusão de quem partiu do campo para a cidade teria uma desilusão pois a mão de obra que migrou para as cidades foram marginalizados nas periferias: é a música cumprindo sua contribuição social.
Neto Fagundes, cantor e apresentador do Galpão Crioulo, reforça que Telmo trabalhou com um segmento muito importante da cultura gaúcha em O Esquilador, pois a partir dali vem toda a fiação e a lã.
— Naquele momento, Telmo consolida um tipo de música que representa muito para o nativismo, que era escrever e cantar as lidas do campo. E uma delas era a esquila, tão cultuada na região da Fronteira. A partir dali, foi para o mundo todo — pontua Neto.
O compositor, historiador e mestre em Literatura Vinícius Brum sublinha que O Esquilador talvez seja a mais emblemática das criações de Telmo. Para ele, uma boa antologia de canções surgidas a partir dos festivais nativistas deverá contemplar “quando é tempo de tosquia já clareia o dia com outro sabor...”.
— O Esquilador, em um primeiro momento, parece dizer apenas de uma atividade do homem do campo, qual seja a tosa ou esquila de ovelhas para que se possa obter a lã com a qual se carda os ponchos para enfrentar a invernia. Contudo, ainda que essa primeira interpretação esteja correta, a canção deixa um ensinamento cuja metáfora parece conter o largo da experiência humana: “Quem vendeu tesouras na ilusão povoeira, volte pra Fronteira para se encontrar”. Ir e voltar! A eterna recorrência dos povos sobre a terra desde de que o homem começa a perceber-se. O poeta sabe e ensina: talvez só poderemos nos encontrar quando atingirmos a nossa fronteira. Inaugural e infinita fronteira — reflete o músico.
Brum conclui:
— A lã de nossas penas necessita de um esquilador. Telmo de Lima Freitas sempre soube, deve ter esquilado as suas, e mostrou a todos o caminho cantando: “Quando é tempo de tosquia, já clareia o dia com outro sabor”.