— Daqui a 50 anos, vão perguntar por que tem tanto gaiteiro no Sul do Brasil. Aí alguém vai responder que a culpa é de um cabeludo maluco que inventou um projeto para fabricar gaitas. Mas agora eu percebi que não precisa de 50 anos. Tem gaiteiros que começaram no projeto e já estão tocando fora do Brasil.
O sonho de criar uma Fábrica de Gaiteiros começou a se desenhar há 10 anos para o acordeonista gaúcho Renato Borghetti. O músico confessa que não imaginava que a ideia maluca de começar a produzir gaita-ponto para ensinar a crianças e adolescentes os encantos do instrumento daria certo tão rápido.
A primeira turma da Fábrica de Gaiteiros foi criada há seis anos. Atualmente, 500 guris e gurias têm aulas no projeto, que está presente em oito cidades gaúchas (Porto Alegre, Guaíba, Barra do Ribeiro, Tapes, Butiá, São Gabriel, Lagoa Vermelha e Bagé) e duas catarinenses (Lages e Blumenau). Há filas de espera de jovens querendo fazer parte das turmas e de cidades que desejam entrar no mapa do projeto, que tem como objetivo retomar a fabricação de gaitas no Rio Grande do Sul e também multiplicar o número de gaiteiros.
Borghetti relembra que o Estado já foi referência na fabricação de acordeões ou gaitas e que, há 40 anos, existiam mais de 20 fábricas gaúchas que produziam o instrumento. Com o tempo, estas fábricas foram desativadas ou passaram a fabricar outros produtos.
— Recebia pilhas de cartas pedindo doação de gaitas. Isso porque é um instrumento muito caro. Uma família que quisesse que um filho ou uma filha começasse a tocar, precisava comprar uma gaita importada, que é caríssima. Mesmo para quem compra um instrumento usado ou recondicionado, o preço é alto. Então, resolvi retomar a fabricação de gaitas. Porque se nós fabricávamos há 40 anos, deve ser mais fácil hoje. Mas o objetivo não era virar um industrial né? Por isso, a ideia foi que todos os instrumentos fabricados fossem destinados para crianças — explica o músico.
"Biblioteca" de gaitas
Os dois primeiros anos do projeto foram destinados apenas ao estudo sobre como fabricar uma gaita ponto oito baixos. Foi justamente nesse estilo de gaita que Borghettinho iniciou sua carreira aos 13 anos.
Depois, o desafio foi buscar os materiais que compõem o instrumento, como a madeira de eucalipto — que vem do sul da Bahia —, o papelão para o fole e o aço para as dezenas de palhetas do acordeão.
A equipe precisou criar até mesmo as máquinas utilizadas no processo de fabricação. Borghettinho explica que a preocupação era fazer uma gaita de qualidade. Hoje, se orgulha do resultado. Uma das gaitas, inclusive, foi presenteada ao guitarrista Eric Clapton, que coleciona instrumentos.
A sede da Fábrica de Gaiteiros, que é onde ocorre todo o processo de criação dos instrumentos, fica em Barra do Ribeiro. Atualmente, quatro pessoas estão envolvidas diretamente no processo de fabricação das gaitas, que é de uso exclusivo dos alunos em sala de aula. A criançada pode levar o instrumento para praticar em casa, desde que devolva dias depois para outro colega usar. Funciona como um livro em uma biblioteca.
Também foi desenvolvido um método de ensino, seguido pelos professores do projeto, para garantir que todos os alunos tenham a mesma aula.
— O objetivo é que os alunos tenham a mesma qualidade de aprendizado, além de ter um repertório em comum — detalha o músico Renatinho Müller, 36 anos, que dá aulas desde o segundo ano do projeto na na Sede Campestre do SESC, em Porto Alegre.
Despartar para a música
Os gaiterinhos da fábrica fazem uma hora de aula semanal. Os critérios para participar é ter entre sete e 15 anos e estar estudando o ensino regular. Inclusive, Borghettinho ressalta que os alunos da fábrica apresentaram melhora no rendimento escolar após o começo das aulas de música.
— Nós percebemos que as crianças melhoram muito no rendimento escolar em razão do projeto, principalmente na matemática. Porque a música é mais matemática. Além disso, as turmas estimulam muito a coletividade e o espírito de grupo e eles acabam rendendo mais na escola — conta orgulhoso Renato Borghetti.
O adolescente João Gabriel Almeida Lisboa, 16 anos, herdou do pai a paixão pela gaita-ponto e já participa do projeto há seis anos. Ele faz aulas todas as quartas-feiras à tarde.
— O projeto me aproximou muito da música. Eu gosto muito de rock, de música clássica e folk. Esse ano eu comecei a aprender a tocar violão também e já estou tentando fazer composições no violão. Na gaita eu já compus uma música. É uma valsa chamada Tempestade.
Pablo Almeida Lisboa, 10 anos, é o irmão mais novo de João e ingressou no projeto aos sete anos. A música que mais gosta de tocar é Pra ti, guria, de Gilberto Monteiro.
— Eu me sinto melhor agora tocando gaita, principalmente nas amizades na escola. Fico muito feliz.
Parceiro de turma dos irmãos, o adolescente Eduardo Susin Cardeal, 13 anos, conta que a paixão pela música começou muito cedo, mas já havia tentando tocar outros instrumentos, como violão, mas foi a gaita-ponto que despertou o encanto do jovem gaiteiro.
— A gaita é mais difícil e mais legal de tocar. Preciso de mais conhecimento para lidar com o instrumento. O maior desafio é continuar nesse ritmo e aprender a tocar cada vez melhor, porque considero que ainda tenho pouco conhecimento sobre música. De repente eu até viro um músico profissional — revela o aluno, que gosta de rock, clássico e música irlandesa.
Borghetti explica que o objetivo é despertar a gurizada para a música, mas que não está preocupado com a profissionalização dos alunos.
— Os alunos é que vão definir se querem ou não querem seguir adiante. O que eu acho bonito é que para aprender a tocar não precisa ter o dom. Todo mundo toca. Quem entrar e se dedicar, vai tocar e já vai conseguir entreter um churrasco com a família.
Prédio histórico
A sede da Fábrica de Gaiteiros é um pavilhão de 1932 (mesmo ano em que nasceu Rodi Pedro Borghetti, pai do Borghettinho), localizado às margens do Guaíba, na Barra do Ribeiro. Inclusive, a fachada original foi mantida com o intuito de preservar a memória do prédio. É lá que são fabricados os instrumentos usados para o aprendizado dos gaiteirinhos. Também são realizadas aulas no local.
O projeto arquitetônico foi desenvolvido por Emily Borghetti, filha de Renato. As salas de fabricação são envidraçadas, o que permite que quem subir no mezanino tenha uma visão aérea da fábrica e das etapas dos processo de fabricação.
— Quanto o visitante entra na fábrica, ele pode ver à esquerda toda a parte de fabricação. Começa pela marcenaria, onde concentra a parte de corte de madeira. Depois vem a sala do fole, onde ocorre a dobra do papelão e são colocadas a cobertura de tecido e as cantoneiras do fole. Depois vem a estamparia, que é parte de metal, onde são feitas as palhetas. A próxima fase é montagem e, por fim, a última etapa é a sala de afinação — explica a arquiteta.
O prédio também conta com um "bolicho". No mezanino, foi construído um auditório de 85 lugares. O diferencial do local é que a parede ao fundo do palco é de vidro e funciona como uma grande janela com vista para o Guaíba.