Às 21h10min, um homem de 80 anos vestindo um jaleco branco como seus cabelos, com estetoscópio nos ombros e empurrando uma cadeira de rodas vazia, subiu ao imponente palco montado na Arena do Grêmio, nesta quarta-feira (1º). “Hello? (Hello? Hello? Hello?)/ Is there anybody in there?”, perguntou o suposto médico.
Diante de 30 mil pessoas, Roger Waters fez seu quarto show em Porto Alegre. A primeira vinda do ex-Pink Floyd foi em 2002, com a In The Flesh Tour no Estádio Olímpico. Depois, ele se apresentaria duas vezes no Beira-Rio, em 2012 e 2018. Desta vez, ele voltou à capital gaúcha com a turnê This is Not a Drill.
Em comunicado sobre a turnê, Roger definiu o show como uma “extravaganza cinematográfica rock’n’roll”. Ele não mentiu. Em mais de duas horas de apresentação, o músico promoveu um espetáculo hipnotizador. Amparado por quatros telões gigantes — que projetam imagens e mensagens em boa parte da apresentação —, luzes, fogos e efeitos especiais, Roger trouxe ao palco junção de teatralidade e clássicos do Pink Floyd, além de pincelar algumas canções da carreira solo.
Quando subiu ao palco vestido como médico, ele aludia à canção de abertura, Confortably Numb (“confortavelmente entorpecido”). Embora a música tenha sido lançada originalmente no disco The Wall (1979), do Pink Floyd, aqui o artista interpreta uma versão solo de 2022, mais densa e sombria, um tanto arrastada. Também não há aquelas soberbas linhas de guitarra de David Gilmour, outro autor da canção, com quem o músico cortou relações há décadas. De qualquer maneira, a nova versão não deixa de ser hipnotizante ao vivo.
O som na Arena foi impecável. Ao longo do show, Roger se alternou em diferentes instrumentos: baixo (que ele tocava na ex-banda), guitarra, violão e piano. Ou só como vocalista, com o gogó em dia.
Aliás, Roger estava acompanhado de uma banda competentíssima, que o auxiliava também nos momentos em ele necessitava de melodias mais agudas — ou aquelas partes que Gilmour cantava no Pink Floyd. Nessas horas, também brilhavam as cantoras de apoio Shanay Johnson e Amanda Belair.
Após o músico tirar o jaleco, o show seguiu com um medley do The Wall que empolgou a Arena: The Happiest Days of Our Lives, Another Brick in the Wall, Pt. 2 e Pt. 3. Solto e conectado com a canção, Roger dançava e se esbaldava no gestual ao interpretar as letras.
Em seguida, uma trinca da carreira solo de Roger, com The Powers That Be, The Bravery of Being Out e The Bar. Embora as execuções fossem impecáveis, talvez aqui o público tenha se dispersado um pouco. Antes de tocar The Bar, ao piano, Roger se comunicou com a plateia pela primeira vez, explicando o conceito da música, declarando amor aos fãs e arriscando um "Bem-vindo" em português.
— Esse piano é o bar neste palco, e nessas garrafas podem ter ou não água. Vou descobrir depois — brincou.
Roger, então, anunciou que voltaria no tempo até a sua fase mais roqueira, retomando as faixas do Pink Floyd. Outra trinca na sequência, desta vez do disco Wish You Were Here: Have a Cigar, a faixa-título e Shine on You Crazy Diamond (Pts. 6-9).
Quando rolou a balada Wish You Were Here, o público cantou junto. Houve um tributo a Syd Barrett, primeiro vocalista e guitarrista do Pink Floyd. Além de fotos de Syd, o telão passou a exibir um relato textual de Roger sobre o amigo, lembrando de quando fundaram a banda e lamentando a perda. A tradução em português escorregava um pouco, às vezes, mas não deixava de ser um momento bonito.
Com uma ovelha gigante flutuando em direção ao público, Sheep, do Animals, encerrou o primeiro ato do show. Assim, o espetáculo teve um intervalo de 20 minutos.
Despertar
No segundo ato, Rogers apareceu no palco conduzido por dois enfermeiros em uma cadeira de rodas, vestindo uma camisa de força. In the Flesh? abre essa parte, como se o músico despertasse de seu entorpecimento. Desta vez, um porco gigante sobrevoou a plateia contendo a frase “He’s Mad Don’t Listen. You’re up against the wall right now” (“Ele é doido, não dê ouvidos. Você está contra a parede agora”).
Também do The Wall, Run Like a Hell foi apresentada na sequência. Déjà Vu e Is This the Life We Really Want? contemplam uma dobradinha da trajetória solo, antes do show ir para o bloco The Dark Side of the Moon.
Primeiro, foi Money, com Roger tocando com elegância. Depois, Us and Them, com aquele solo de saxofone etéreo. Ambas as faixas foram cantadas pelo guitarrista Jonathan Wilson, que fez as vezes de Gilmour. Aqui, uma chuva começou a cair timidamente.
Roger ainda trouxe Any Colour You Like, Brain Damage e Eclipse. Luzes deslumbrantes se formaram no palco em referência ao prisma do The Dark Side of the Moon. Para sorte do público, as canções desse bloco não tinham nada a ver com as versões que o músico regravou para o álbum The Dark Side of the Moon Redux, lançado este ano, que soaram um tanto estafantes.
Roger foi ovacionado ao final dessa parte, ao que ele agradeceu a Porto Alegre. Então, ao falar sobre a próxima música Two Suns in the Sunset, do The Final Cut, pediu o fim do genocídio e comentou o quão seria fácil se os governantes das grandes potências mundiais ligassem uns para os outros para interromper as guerras.
Antes de tocar outro trecho de The Bar, Roger brincou que pegou emprestadas algumas expressões usadas na música, como "senhora de olhos tristes”, de Sad Eyed Lady From The Lowlands, de Bob Dylan. Ele ressaltou que o termo referencia a sua esposa, Kamilah Chavis, com quem se casou em 2021.
— Seus olhos ficam tristes porque ela tem muita empatia, dona de um coração muito grande — justificou.
Ainda, Roger lembrou o irmão mais velho, John D Waters, que morreu no ano passado. Por fim, ele dedicou The Bar a Bob Dylan, à esposa e ao irmão.
Show ativista
Como já era se esperar, Roger fez um show ativista. Aliás, um aviso exibido no telão antes do espetáculo já dava o tom: “Se você é um daqueles que diz: Eu amo o Pink Floyd, mas não suporto a política do Roger’, vaza pro bar!”. Pois não faltaram mensagens políticas projetadas no telão ao longo da apresentação. Por exemplo, presidentes dos EUA — desde Ronald Reagan ao atual, Joe Biden — são descritos como criminosos de guerra, com atos listados no telão. Negros, povos originários, palestinos, trans e mulheres têm crimes contra si lembrados também.
Ainda foram projetadas mensagens em inglês ou português como "resistir ao fascismo", "resistir à guerra", "imposto para os ricos", "parem com o genocídio", "todos nós precisamos de direitos", entre outras. Muitas vezes o público ovacionava esses recados, especialmente quando foi prestado um tributo a Marielle Franco.
É um show com muita informação visual, textual e musical. Talvez um espetáculo para ser digerido por dias. Semanas. Anos.
Quando foi anunciada, This is Not a Drill foi descrita como a “primeira turnê de despedida de Roger Waters”. Trata-se de uma brincadeira do músico com colegas de profissão, que costumam anunciar turnês de despedida e acabam voltando. No entanto, o artista não descarta que seja. “Pode ser o seu último grito”, como frisou em comunicado.
No show do Rio de Janeiro, ele comentou que não sabe se tem “outras turnês como esta dentro de si” e que “não é provável que volte”, mas ressaltou estar adorando aquele momento. Sendo sua última vez ou não em Porto Alegre, pela entrega que se viu na Arena do Grêmio nesta quarta, Roger deixará saudade.