Os dedos de Ivone Pacheco já não tocam mais o piano. A Dama do Jazz, como ficou conhecida, também não sobe mais no palco que ela montou no porão de sua residência, um casarão de três andares da década de 1940 no bairro Petrópolis, em Porto Alegre. Mas o espaço destinado a quem gosta de tocar e ouvir música não só permanece recebendo os frequentadores mais antigos como arrebanha novos entusiastas que desejam pertencer ao quase secreto clube de jazz batizado de Take Five.
Ivone começou a tocar piano na infância, no hall do hotel que era de seu pai, no Centro Histórico. Tirava músicas para os hóspedes, mas a vontade de se apresentar para um público maior que fosse só seu cresceu junto com ela. Perdeu a mãe aos 17 anos e teve o desejo tolhido pelo progenitor. Casou e teve três filhos que, por sua vez, cresceram ouvindo a mãe correndo os dedos pelas teclas do piano e da concertina, semelhante ao acordeom, a cada aniversário e casamento de parente ou amigo da família.
Com o pai falecido, quase separada do marido e os filhos devidamente criados, colocou um ponto final na vida doméstica e abriu as portas de sua casa para que todos pudessem desfrutar de seu talento. Foi incentivada pelo músico Marcos Ungaretti, que a descobriu tocando piano na Colônia de Férias da UFRGS durante um verão em Tramandaí. Em 1982, aos 50 anos, Ivone fundou o clube de jazz no pavimento inferior do casarão, espaço que servira de danceteria para os filhos ainda adolescentes organizarem bailinhos dançantes.
— Ela disse: "Vocês estão criados". E se libertou. Ela dizia que a menopausa tinha mexido com a cabeça dela — conta a filha do meio, Rosa Marin Pacheco, 62 anos.
Passou a receber músicos da noite de Porto Alegre semanalmente para shows improvisados, no estilo jam sessions. Chamou os encontros de Take Five, em homenagem à mais famosa música do grupo de jazz americano The Dave Brubeck Quartet, que lançou a composição no disco Time Out (1959), imprescindível para fãs do gênero. A apresentação principal, contudo, sempre foi ela. Não iria mais deixar-se de lado.
A regra é que cada um leve sua própria bebida, pois os encontros não têm fins lucrativos. Ninguém é pago e ninguém precisa pagar por nada. Também nunca houve ampla divulgação na imprensa de Porto Alegre, e o endereço do local, que não está estampado em nenhum cartaz ou rede social, só é conhecido pelo boca a boca. Ivone sempre quis que o clube de jazz tivesse um clima mais íntimo, embora os amigos de amigos e quem mais quiser chegar também sejam bem-vindos.
Como a língua das pessoas é mais rápida do que a notícia, o Take Five ganhou fama apesar da atmosfera de clube secreto. Houve noites em que chegou a formar fila de gente na rua querendo atravessar o jardim do casarão e avançar até os fundos do pátio, onde pessoas sentadas em cadeiras de plástico fumam cigarros e conversam alto, e, quem sabe, passar pela porta do porão, onde o silêncio é solicitado com "schhhhh" e pigarros para que músicos e cantores sejam ouvidos.
Para tornar o público mais seleto e escasso, Ivone reduziu os encontros a quatro vezes ao ano. Como seu talento ao piano tornara-se notório, começou a se apresentar fora dali, em bares e casas noturnas. Em 1998, realizou um sonho ao gravar um disco com canções que executava para os adeptos do clube, como Speak Low, Smoke Gets in Your Eyes e As Times Goes By, standards do jazz. Nenhuma gravadora se interessou, o que a fez tirar dinheiro do próprio bolso para lançar o CD Dama do Jazz - Ivone Pacheco e Convidados.
Aos 75 anos, começou a ter problemas para andar, o que exigiu a companhia quase constante de Rosa durante os shows no porão. Ganhou ares de figura mítica por sentar-se em uma poltrona colocada em cima do palco, ao lado do piano, e dali assistir aos músicos até que chegasse sua vez de tocar.
Também começou a esquecer-se das coisas e a fazer repetições ao piano que geravam estranhezas entre amigos. Em 2022, quando o Take Five completou 40 anos e Ivone, 90, Rosa a colocou numa cadeira de rodas, desceu as escadas do casarão e a levou para se despedir do clube. Ivone apresentava demência senil e já não falava mais. Mais de 40 músicos se revezaram no palco para homenageá-la em sua última aparição.
— Minha mãe era uma pianista que se jogava no piano, dava tapas. Ela perturbou bastante a cena do jazz. Era um tratorzinho. Quis fazer o clube de jazz e ninguém segurou. Ela tinha personalidade forte, mas foi castrada primeiro pelo pai e, depois, pelo casamento. Abriu os portões da casa para quem quisesse entrar. E nunca, em 41 anos de clube, aconteceu alguma baixaria aqui — diz a filha.
Graças a Rosa, os encontros do Take Five seguem ativos. Jovens ansiosos em soltar a voz em público se apresentam ao lado de músicos de carreira que já rodaram o Brasil e até fora dele. Os que se sentam entre as três fileiras de cadeiras em frente ao palco gostam de apreciar boa música, mas não há exigência para ser virtuose.
Na quinta-feira (12) de feriado, Eron Rafael dos Santos, 31 anos, foi levado pela primeira vez pelo professor de canto e instrumento Renato Borba, e fez sua estreia para uma plateia cantando This Masquerade, de Leon Russell, popularizada por George Benson.
— Quando eu ouvia falar do Take Five, achava que era algo comercial. Depois que entendi que era um clube. Tem uma simplicidade muito bonita. Gosto de coisas que não são pretensiosas.
Novata entre os habitués, Brenda Soares, uma jovem cantora de 21 anos, black power, saia de fenda e salto alto que gosta de interpretar Etta James, teve o privilégio de conhecer Ivone no ano passado, quando pôde se apresentar diante dos olhares expressivos da veterana que fazia sua derradeira aparição.
— Na primeira vez que vim ao clube, pensei: "Nossa!". Muitos são profissionais, mas todo mundo me acolheu muito bem. É uma reunião, não tem julgamento. Sou extremamente grata por ter conhecido o clube.
Assídua nessas quatro décadas de clube, a cantora Semiramis Gorini, 79 anos, amiga de Ivone, presenciou uma mudança no estilo de jazz tocado no porão, passando do tradicional para algo mais acelerado, com influências do rock e do eletrônico, interferência direta das novas gerações.
— Eu lembro de uns guris que chegaram e disseram que a música estava muito chata. Porque eles eram mais roqueiros, queriam uma coisa mais "chacoalhada". Aí um disse para outro: "Fica aí que vão chegar uns velhos que tocam uma coisa bacana".
Embora o jazz seja a prata da casa, blues, rock, bossa nova e até samba acabam escapando dos instrumentos. Ivone nunca proibiu qualquer gênero.
— Ela dizia que, no clube, o blues era o arreto, mas a hora do orgasmo era o jazz — lembra a amiga.
Ainda que não coloque mais os pés no porão, Ivone segue como guardiã do clube nos andares de cima da casa. Foi lá que recebeu a reportagem de GZH na última quinta-feira, e de lá, sob a vigília constante de familiares e cuidadoras, pode ouvir as notas dos instrumentos vazando pelas paredes e os consequente aplausos de seu clã.