Ritchie está deitado em uma cama. Talvez sonhando. Ele abre lentamente os olhos e visualiza uma mulher com um jeito sereno de ser. Ela tem o cabelo curto e ruivo, veste uma jaqueta de couro preta, com seu ombro esquerdo descoberto. Os dois estão em uma casa com mobília de um século passado.
Ao longo de quatro minutos, o cantor inglês:
- Veste uma jaqueta de couro preta;
- Passa as mãos em seu cabelo ao se ver no espelho;
- Pega delicadamente uma luva preta e a observa com ternura;
- Caminha pelo quarto e cruza com a ruiva como se os dois se fundissem em um só;
- Balança o corpo numa tentativa de dança.
Ele aparece, especialmente, reflexivo. Quem sabe pensando o que estava fazendo ali. Poucas horas antes, Ritchie peregrinou por rádios de Porto Alegre. Até que foi encaminhado para a gravação de um clipe.
Há 40 anos, Ritchie gravou o vídeo original de Menina Veneno na capital gaúcha. Na verdade, foi rodado um "musical", como eram chamados os clipes exibidos no programa Fantástico, da TV Globo. Naquele período, a revista eletrônica de domingo contava com um bloco local no Rio Grande do Sul, com notícias e atrações locais produzidas pela RBS TV — o que incluía clipes de artistas gaúchos ou que visitavam o Estado.
Ritchie gravou o musical para o bloco gaúcho do Fantástico em 27 de março de 1983. Naquele momento, o cantor inglês ainda não havia lançado o disco Voo de Coração, que sairia em julho, mas já fazia sucesso com o compacto de Menina Veneno — que também traz a faixa Baby Meu Bem (Te Amo) —, lançado em fevereiro.
Richard David Court, mais conhecido como Ritchie, nasceu em Beckenham, na Inglaterra, em 1952. Ele desembarcou em São Paulo aos 20 anos, a convite de um grupo de brasileiros, como Rita Lee e Liminha (d'Os Mutantes). No país, o britânico integrou alguns projetos musicais, chegando a ser vocalista da banda de rock progressivo Vímana, acompanhado por Lobão na bateria e Lulu Santos na guitarra.
Em 1982, ele começou a preparar seu primeiro trabalho solo em português, com inspirações no synth-pop e no new romantic. Para isso, buscou a parceria do poeta e compositor Bernardo Vilhena. Dentre o repertório criado com o parceiro estava Menina Veneno, que traz a figura de uma femme fatale que aparece nos sonhos do eu-lírico (poderia ser ele mesmo?). Na época, o inglês estava inspirado pela leitura do livro O Homem e seus Símbolos, do fundador da psicologia analítica Carl Jung.
Antes de a música ser lançada oficialmente, um divulgador levou-a para ser testada em uma rádio de Fortaleza (CE). Só que o single foi erroneamente tocado no ar e, imediatamente, virou coqueluche entre os ouvintes. Organicamente, Menina Veneno se alastrou.
Estética "mais dark"
Quando Ritchie viajou a Porto Alegre, a intenção era divulgar o compacto de Menina Veneno. Como ocorria nessas visitas, o roteiro poderia passar por rádios, TV, jornais, o que fosse possível. Era uma divulgação para capitalizar audiência, ser reconhecido e, quem dera, vender os discos.
Falando a GZH, Ritchie lembra que foi despachado a Porto Alegre pela sua então gravadora, CBS, para as chamadas "blitz de rádio". O artista acordou cedo e circulou por emissoras da cidade.
— Fiz essa peregrinação para me difundir artisticamente. A música estava rodando sozinha, mas ninguém me conhecia — recorda o cantor. — No meio do break, o divulgador me avisou: depois do almoço, vamos passar em não sei aonde e gravar o musical de Menina Veneno. "É para o quê?", perguntei. Para o Fantástico, ele respondeu. Nossa, Fantástico, que genial! Só que tinha um detalhe… O programa central, no Rio, não queria fazer, mas sim a filial em Porto Alegre. Fomos aproveitar essa deixa.
Quem costumava dirigir as gravações dos musicais para o bloco gaúcho do Fantástico era o fotógrafo Gilberto Perin. Para o programa, ele realizou vídeos de artistas gaúchos como Bebeto Alves, Nei Lisboa, Kleiton & Kledir, entre outros, além de nomes nacionais (Ednardo e Lucinha Lins) e internacionais (vide a portuguesa Eugénia Melo e Castro e os uruguaios Los Olimareños).
Perin frisa que, naquele período, trabalhava com clipes semanalmente. O ritmo era intenso:
— Fazíamos tudo de três a cinco horas. A verba de produção era zero. A equipe de produção do clipe era eu, o fotógrafo/cameraman, um auxiliar e o motorista. A gente tinha que inventar um por semana, praticamente. Se tu observar, naquela época, os musicais eram sempre o artista caminhando num parque ou na rua, porque era o que tinha.
Segundo Perin, os divulgadores da gravadora orientaram a gravação de Baby Meu Bem (Te Amo), mas ele insistiu que Menina Veneno tinha mais potencial. O diretor quis experimentar uma estética "mais dark" nesse clipe, contrastando com o tom alegre da música. Para a gravação, eles foram até um casarão na Avenida Cristóvão Colombo, com móveis antigos. Perin recorda que Ritchie chegou pouco após as 13h ao espaço reservado e saiu de lá pouco antes das 17h.
Para ser a "menina veneno", a modelo Elaine Bernardes foi requisitada. O diretor ressalta que não queria uma modelo com rosto padrão.
— Sabia que ela tinha uma presença marcante. Uma modelo com personalidade. Foi legal porque vestimos Ritchie e ela muito parecidos, com couro — diz. — Um amigo comento comigo: parece que os dois são uma única pessoa. Até fiz essa jogada no clipe, um passa pelo outro, mas isso é piração minha.
De fato, essa "piração" vai ao encontro de uma das inspirações junguianas de Ritchie na composição, de figuras que as pessoas sonham, mas, como realça o músico, trata-se delas mesmas. Aliás, Perin descreve o cantor como alguém tranquilo para trabalhar com o conceito do clipe:
— Disse para o Ritchie: "Olha, vamos apresentar uma mulher misteriosa num quarto, que chega, e ele 'fala a letra' com ela, mas os dois nunca se encontram". Ritchie topou. O que interessava para o artista era aparecer no clipe. A única coisa que ele pediu foi uma parte aparecer se movimentando, não dançando exatamente, mas para dar um pouco de embalo e mostrar que a música é "dançável".
Aquelas ombreiras
Então, Ritchie foi gravado de vários ângulos, com uma câmera, apenas. O próprio diretor reconhece a precariedade dos equipamentos. Eram clipes feitos "na raça". Já o cantor britânico diverte-se ao relembrar das orientações:
— "Deita ali na cama." "Tem uma menina que vai entrar." O que faço agora? "Fica olhando para as nuvens...". Ok — descreve Ritchie. — Era uma produção artesanal. Tentava fazer as caras e bocas que a gente via nos clipes do Michael Jackson para tentar dar um pouquinho de conteúdo para a coisa. Não tinha noção de como me comportar diante de uma câmera de televisão. Era uma coisa naïf, até. Mas me orgulho bastante de ter feito aí. Foi muito legal. Era uma época em que ninguém estava fazendo clipes.
Ritchie gravou o musical e voltou para casa. No entanto, ele não assistiu ao resultado daquelas quatro horas de gravação (o vídeo de fato só fora mostrado no bloco regional do Fantástico). Só foi ver o primeiro clipe de sua carreira 36 anos depois, quando Perin o disponibilizou na internet. Foi um choque.
— "Não, não acredito! É aquele clipe…" Claro que fiquei horrorizado quando vi. Não é possível! (Risos.) É uma coisa muito… qualquer coisa. A música sobreviveu décadas, mas os clipes…. Aquelas ombreiras traem qualquer um.
Ritchie – A Vida Tem Dessas Coisas
Quatro décadas depois de gravar Menina Veneno em Porto Alegre, Ritchie volta à capital gaúcha com o show A Vida Tem Dessas Coisas, em que celebra 40 anos do disco Voo de Coração e de sua trajetória solo. Ele sobe ao palco do Teatro do Bourbon Country na próxima sexta-feira, dia 20, a partir das 21h. Informações sobre ingressos podem ser obtidas no site uhuu.com.