Em entrevista ao projeto Three Pieces, no qual músicos de todo o mundo falam sobre três canções ou artistas que marcaram suas vidas, o russo Andrey Makarevich escolheu o Conjunto Farroupilha entre uma de suas opções. Aos 64 anos, líder da banda Mashina Vremeni, em atividade desde 1969, Makarevich é um ícone do rock da Rússia. No vídeo publicado em 2012 no canal do YouTube do Three Pieces, ele lembrou shows do grupo gaúcho naquele país nos anos 1960 e seus dois discos lançados por lá, com destaque para a faixa Tem que Ter Mulata, composição do sambista gaúcho Túlio Piva. Entre suas impressões sobre essa música, Makarevich a descreve como "mágica", antes de começar a cantar, em português – com sotaque:
"O samba pra ser samba brasileiro/ Tem que ter pandeiro/ Tem que ter pandeiro/ O samba pra ser samba na batata/ Tem que ter mulata/ Tem que ter mulata".
Makarevich ainda sublinhou sua relação com o Conjunto Farroupilha:
– Faz lágrimas sentimentais caírem dos meus velhos olhos.
Internacional, brasileiro e gaúcho: o mundo era pequeno para o Conjunto Farroupilha, cuja fundação completa 70 anos neste mês de setembro. Afinal, não são muitos os músicos que podem fazer a seguinte constatação à reportagem de GaúchaZH:
– Posso te dizer que conheço todo o planeta Terra.
A frase é do maestro Tasso Bangel, 87 anos, arranjador, acordeonista e líder do Conjunto Farroupilha. O grupo foi pioneiro na concepção da música regional gaúcha e, também, ao mostrar essa música no Exterior.
– Com certeza foi o primeiro grupo a levar a música do Rio Grande do Sul para fora do país. Também há a parte performática, de vestir trajes (pilcha e vestido de prenda), localizando um gaúcho no sul do Brasil, além daquele da Argentina – afirma o compositor e historiador Vinícius Brum.
O conjunto foi criado em 1948 para ser o grupo Rádio Farroupilha. Uma de suas incentivadoras foi Inah Vital, que viria a se casar com Tasso Bangel. A soprano costumava se apresentar nos estúdios da emissora.
– Ela era a primeira cantora do Rio Grande do Sul. Ainda não era o tempo de Elis Regina – garante o maestro Bangel.
Inah não gostava de cantar sozinha, por isso pressionava a direção da rádio para que um conjunto fosse formado. Na época, Tasso havia se mudado de Taquara para Porto Alegre, onde estudava música no Instituto Belas Artes. Como também tocava com frequência na emissora, logo seu nome foi lembrado para o grupo. Além do futuro casal, a primeira formação do conjunto contava com Danilo Vital (irmão de Inah), Alfeu de Azevedo e Eddy Gomes (que sairia em 1950). O conjunto teve ainda Estrela D’Alva (entrou em 1951), Sidney do Espírito Santo (que substituiu Alfeu), Lourdinha Pereira e Norma Nagib.
Como destaca a doutora em música Luciana Prass no artigo Nas Asas da Varig e da Panair: o Conjunto Farroupilha e o Espalhamento da Música Popular Brasileira e Gaúcha nos Anos 50 e 60 do Século XX, o quinteto seria o primeiro conjunto vocal brasileiro a misturar vozes masculinas e femininas. No início, o grupo foi influenciado pelas big bands de jazz norte-americanas, como a de Glenn Miller. O primeiro arranjo executado foi Please, Don't Say No, Say Maybe, de Sammy Fain e Arthur Freed, sucesso em 1945.
– Naquela época, as rádios costumavam ter seus conjuntos com músicos contratados. Nos anos 1940, a Rádio Nacional, do Rio de Janeiro, era a emissora mais ouvida do Brasil. As rádios daqui, como a Farroupilha, pegavam as playlists do que era tocado no Rio naquele momento, e aí os arranjadores locais faziam novos arranjos para essas mesmas músicas. Era um repertório brasileiro unificado – explica o músico e pesquisador Arthur de Faria.
Além da influência do jazz das grandes orquestras americanas, o grupo trazia em sua sonoridade reminiscências ao tango dos países do Prata e dialogava com grupos vocais do Brasil e dos EUA. Mas logo em seguida o Conjunto Farroupilha se encontraria com os então jovens folcloristas Barbosa Lessa e Paixão Côrtes. E, a partir disso, passaria a ter um repertório mais identificado com a cultural local.
O regional resiste
Ao longo das décadas de 1940 e 1950, Côrtes e Lessa se empenharam na pesquisa da tradição gaúcha, criando uma série de solenidades que visavam a chamar a atenção para os símbolos socioculturais do Estado: a Chama Crioula como uma extensão da Chama da Semana da Pátria, o Desfile dos Cavalarianos, a Ronda Crioula e o primeiro Centro de Tradições Gaúchas, estabelecido em 1948 com o nome de 35.
– No fundo, é tudo uma reação à americanização do mundo no pós-guerra. Durante os anos 1940, a cultura americana passou a ser foco do mundo, e os regionalistas passaram a ter medo de que suas culturas acabassem e tudo ficasse dominado pelos EUA. Então, surgiram esses movimentos de resistência local, às vezes inconsciente. No Rio Grande do Sul, houve o Erico Verissimo escrevendo O Tempo e o Vento, surgiu o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), o 35 CTG, tudo nessa segunda metade dos anos 1940 – observa Arthur de Faria.
Porém, o resgate às tradições e ao folclore só seria completo com a difusão de suas danças e músicas. No livro Danças e Andanças da Tradição Gaúcha, de 1975, Côrtes e Lessa relatam que, no começo dos anos 1950, uma nova fábrica de discos do Rio chamada Rádio introduzia uma novidade no Brasil, o long-play (LP), com suas gravações em 33 rotações por minuto (rpm). Até então, somente se conhecia o disco com uma música em cada face, em 78 rotações. Conforme a publicação, a fábrica convidou o Conjunto Farroupilha para gravar um LP, mas exigiu que ele tivesse músicas típicas do Sul. "Não possuindo repertório para isso, os rapazes e moças do conjunto entraram em contato conosco. Mostramos canções nossas e também melodias de projeção folclórica", escreveram os dois folcloristas.
Lançado em 1953, Gaúcho traz sete faixas propostas por Lessa e Côrtes, além de Amargo, de A. Amábile e Lupicínio Rodrigues. Nesse álbum, aparecem músicas como Negrinho do Pastoreio e Tatu. Contando com vocais harmoniosos acompanhados por orquestra, o disco foi um aceno para o que seria chamado por Paixão Côrtes, no livro Aspectos da Música e Fonografia Gaúchas, de 1984, de "Estilo Conjunto Farroupilha" – o qual combina a sonoridade do folclore gaúcho com elementos de outros "rincões". Segundo Côrtes, essa linha se iniciou na década de 1940, com o grupo vocal Quitandinha Serenaders, e teve continuidade com Os Sinuelos, Os Gaudérios e Os Araganos. Foi nesse momento que a tradição pesquisada pelos folcloristas seria incorporada ao visual dos integrantes, que passaram a vestir a indumentária gaúcha.
Em 1957, Gaúchos em Hi-Fi deu sequência à proposta do álbum de estreia, trazendo novamente canções folclóricas recolhidas e compostas por Lessa e Côrtes – como Balaio, Maçanico, Noites Gaúchas e Prenda Minha. No disco lançado pela gravadora Columbia, o conjunto aproveitou recursos tecnológicos da época combinados com arranjos modernos assinados pelo maestro italiano Enrico Simonetti.
– Gaúchos em Hi-Fi é um dos ápices da chamada canção regional. Ele foi lançado 14 anos antes da Califórnia da Canção, que é o segundo episódio conformador desse espectro da música regional, evidentemente, em paralelo a outras correntes e festivais – avalia Vinícius Brum.
Para Brum, o trabalho do Conjunto Farroupilha, "que alia a sofisticação musical, a excelência estética e os textos voltados para a temática rural ou folclórica do Rio Grande do Sul", constitui "um marco decisivo" para que a canção regional gaúcha alcance a enorme popularidade que detém hoje.
De todo modo, paradoxalmente, o Rio Grande do Sul foi pequeno para a sonoridade do Conjunto Farroupilha.
Inspiração brasileira
De Norte a Sul (1956), disco lançado entre Gaúcho (1953) e Gaúchos em Hi-Fi (1957), já dava uma amostra de que a inspiração para o grupo iria além do Mampituba. O Farroupilha explorou regionalismos de outras partes do Brasil, apresentando faixas de compositores de São Paulo, Alagoas, Bahia, Pernambuco e Pará. Há clássicos como Tristeza do Jeca, Boi Bumbá e Festa de Rua, esta última de Dorival Caymmi.
– Um diferencial do Conjunto Farroupilha foi ter uma ambição nacional, que possivelmente foi herdada de Pedro Raymundo, que se vestiu de gaúcho e foi tocar no centro do país antes do grupo. Tanto que o Farroupilha gravou bossa nova, samba, entre outros gêneros. Não queria se circunscrever ao ambiente regional. Eram músicos muito bons tecnicamente – opina o músico e historiógrafo Henrique Mann, fazendo referência ao catarinense (de Imaruí) Raymundo, cuja figura inspirou ícones do gauchismo como Gildo de Freitas e Teixeirinha.
No mesmo ano em que lançou De Norte a Sul, o conjunto se desligou da Rádio Farroupilha e deixou o Estado.
– Concluímos que queríamos mais. Queríamos grandes palcos, grandes lugares, e fomos para o Rio – conta Tasso. – Antes, já íamos ao centro do país, porque a Farroupilha integrava a rede associada do Assis Chateaubriand, assim como as rádios Tupi de Rio e São Paulo. Representávamos o Rio Grande do Sul nos festivais nacionais.
Depois, saindo do Rio, os integrantes do conjunto ainda foram morar em São Paulo, onde se mantiveram até o encerramento das atividades do grupo.
Seus discos posteriores mesclariam canções de Côrtes e Lessa com músicas de outros compositores brasileiros e internacionais. Os Farroupilhas na TV (1960) traz a primeira gravação de Samba de uma Nota Só, de Tom Jobim e Newton Mendonça, música que ganharia o mundo no disco Jazz Samba (1962), de Stan Getz e Charlie Parker, que levou a bossa nova aos EUA.
– Estávamos gravando no estúdio da Columbia quando apareceu por lá o Tom Jobim. Ele estava com a Maisa. Esperou que nós terminássemos para fazer as coisas dele. Foi ali que nos ouviu. E perguntou: "Quem é o arranjador?". Era comigo. Ele me disse: "Parabéns, achei o conjunto lindo. Tenho um samba, e queria ver se essa melodiazinha te agrada". Me deu a música. Lógico, eu adorei e gravamos – recorda Tasso.
Os Farroupilhas também estiveram no programa semanal Gessy 21 e 30, das TVs Rio, Record e Tupi:
– A cada programa, nós fazíamos um repertório dedicado a um tema específico: automóvel ou praia, por exemplo. Havia um episódio em que nosso cenário era um posto de gasolina, e nós éramos frentistas cantando. Tudo fantasia. As pessoas também não sabiam que era tudo dublado – diverte-se o maestro.
Farroupilha internacional
Ainda em meados dos anos 1950, o Conjunto passou a promover os eventos da Varig, vendendo uma imagem da cultura do Brasil ao redor do mundo – aonde quer que a companhia aérea fundada no Rio Grande do Sul fosse pousar.
– A empresa nos disse que gostaria de contar conosco porque nós cantávamos uma variedade de músicas. Além das nacionais e regionais, apresentávamos canções americanas, francesas e alemãs.
Só os sucessos da época. Então, eles queriam que a gente fosse nesses eventos, por exemplo, na França, e tocasse não só as músicas brasileiras, mas também as locais, fazendo essa mistura. Sempre nos mandavam antecipadamente a música de maior êxito naquele momento no país que visitaríamos. Quando a cantávamos, o público ia à loucura – diz Tasso.
Assim, o conjunto viajou para Alemanha, França, Uruguai, Argentina, Porto Rico, EUA, Venezuela, Inglaterra, Portugal, Espanha, Noruega e Finlândia, entre outros países. A cada viagem, o grupo trazia canções internacionais em voga à época para seus discos, casos de Liechtensteiner Polka (Kotscher e Lindt) e Clases de Cha-Cha-Cha (Ramo’n Marquez e Sergio Marmolejo).
Para a Rússia do roqueiro Andrey Makarevich – e também para a China –, o Conjunto Farroupilha viajou a partir de uma associação com o Ministério das Relações Exteriores, que levou o grupo com o objetivo de divulgar a cultura nacional.
– O aplauso dos russos era arremessar flores. Nós ficávamos nos defendendo delas no final de cada apresentação. Coisa linda! – rememora Tasso.
Entre as apresentações no Exterior, destaque também para uma temporada dividida com o espetáculo burlesco do Moulin Rouge, que veio de Paris para mais de um mês em cartaz em Buenos Aires, seguindo depois para Mar del Plata, também na Argentina, e Montevidéu.
Em Nova York, em 1960, o Conjunto Farroupilha se apresentou por várias semanas na icônica casa de espetáculos Radio City Music Hall.
– Lá, os shows foram fantásticos, pois havia orquestra nos acompanhando – afirma o maestro.
Segundo Luciana Prass, nessa ocasião o conjunto cumpria uma agenda em um país que, àquele momento, almejava ser mais cosmopolita:
– Quando os americanos gravavam uma polka alemã, uma canção russa ou um sucesso da Venezuela, eles estavam cumprindo o papel de ser uma indústria de música do mundo. Para mim, o Farroupilha era muito mais do que a face regional. Era cosmopolita, tanto na estética dos arranjos quanto na compreensão do repertório.
Um história folclórica do Farroupilha teria acontecido quando o grupo se apresentou na BBC, em Londres, no início dos anos 1960. Os integrantes estavam pilchados e ensaiando Samba de uma Nota Só. Até que a atenção do conjunto se voltou para a entrada do estúdio.
– A porta se abriu e tinha três cabecinhas olhando a gente cantar.
De repente, a Estrela D'Alva perguntou para um funcionário quem estava nos observando o tempo todo. Ele disse que não sabia e foi averiguar. Depois, trouxe a resposta: "Me disseram que, aparentemente, o nome deles é Beatles" – relata Tasso.
O maestro especula sobre o que teria chamado a atenção dos Beatles:
– Estavam interessados em algo diferente deles. Estávamos vestidos de gaúcho, exigência dos produtores do programa. Era o começo deles também, ainda não eram ninguém. O jeito que nós cantávamos os atraiu.
Legado a ser organizado
De acordo com Tasso Bangel, o Conjunto Farroupilha teria encerrado suas atividades em 1992, totalizando 44 anos de carreira. Contudo, é difícil encontrar registros de atividades após o disco Farroupilha 35 (1983).
– O mercado musical estava mudando, e fomos indo até vermos que não dava mais para a gente. Eu também já tinha a minha vida musical como arranjador. Já não precisávamos mais financeiramente do Farroupilha para sobreviver – calcula o maestro, que formou o grupo Tom da Terra nos anos 1990 e hoje comanda o conjunto instrumental Camerata Pampeana.
Ainda há muitos pontos imprecisos na biografia do Conjunto Farroupilha, como as datas de entradas e saídas de integrantes e registros de apresentações históricas. Muito da história do grupo foi transmitida de forma oral, o que gera contradições e ocasiona a perda de informações. Por exemplo, nem Tasso consegue precisar o período em que Inah saiu do grupo em definitivo – ela morreu em 2007.
Para recuperar e preservar a memória do Conjunto Farroupilha, Luciana Prass criou em 2014 o projeto de pesquisa Tasso Bangel e o Eterno Aprender, que mantém um site (ufrgs.br/tassobangel) cuja finalidade é reunir fotos, músicas, discografia e entrevistas do maestro. Para ela, o Farroupilha foi fundamental para ajudar a imprimir uma identidade à música regional gaúcha:
– A música do Rio Grande do Sul não possuía identidade naquela época. Até já havia surgido Pedro Raymundo. O choro era muito forte no Estado, havia uma cena de boemia. Mas o que teria um caráter mais regional não aparecia. O Farroupilha foi muito importante na divulgação desse repertório do Paixão e do Lessa. Eles cantavam essas canções singelas e bucólicas, inserindo aquelas vozes e uma orquestra, aquilo ali saía como um produto muito sofisticado.
Para Arthur de Faria, o Conjunto Farroupilha dava uma roupagem pop à música regional:
– Antes do grupo, a música regional gaúcha que existia era muito simplória. Quem deu uma cara contemporânea, moderna e pop para esse repertório foi o Conjunto Farroupilha. Era a música pop da época: o conjunto pegava o que existia e transformava aquilo em outra coisa. Não é muito diferente do que Chico Science fazia, por exemplo, ao estilizar e botar em sintonia o regional com o que de mais moderno era feito no mundo naquele momento. Foi isso que o Conjunto fez: pegou um repertório absolutamente local e pôs, nele, uma cara de arranjo e sonoridade que era sintonizada com o que mais moderno se fazia no mundo, o que basicamente remete aos grupos vocais norte-americanos que estavam na moda. Era música pop de alta qualidade. Não é a toa que, para onde eles iam, em qualquer parte do mundo, não havia estranhamento. O público não via o grupo pelo exótico, mas pela sua excelência.
Vinicius Brum sublinha o pioneirismo do grupo:
– Antes de propor ou manter uma tradição, o que o Conjunto Farroupilha fez foi inaugurar uma linguagem, propor a canção regional do Rio Grande do Sul como a gente a conhece hoje. Parece que ela sempre existiu, mas tem 70 anos.
Tasso Bangel diz que, no legado do conjunto, deve estar incluído o protagonismo feminino.
– Os conjuntos gaúchos sempre foram muito masculinos. No nosso, predominavam as vozes femininas. Não teve mais ninguém que nos desse essa continuidade – frisa o maestro.
Ele completa:
– Na época em que se usava um violãozinho e uma gaitinha ponto, nós entramos na música gaúcha com arranjos e orquestra sinfônica. Era uma coisa que nós podíamos fazer porque eu tinha estudado música mesmo. Não era uma aventura, não era uma brincadeira de guri. Acho que o maior legado que deixamos foi essa qualidade musical, inovadora naquele tempo.