Na próxima quarta-feira, completa-se o centenário de Dorival Caymmi (1914 - 2008). As homenagens começaram em 2013, com o disco Dori, Nana e Danilo - Caymmi, no qual os três filhos cantam músicas menos conhecidas de seu repertório. O álbum comemorativo mais aguardado, no entanto, é Dorival Caymmi - Centenário, que deve ser lançado apenas no segundo semestre de 2014: trará clássicos do mestre da música popular interpretados por, entre outros, Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil - que não gravavam juntos desde 1992. Para lembrar a data, ZH convidou um músico e fã para escrever sobre a obra do autor de clássicos como Saudade da Bahia, Marina, Maracangalha e Rosa Morena. Confira:
Intuitivo e surpreendente
Por Arthur de Faria, músico e jornalista
Ezra Pound, muito tempo atrás, separou os escritores em três categorias: inventores, mestres e diluidores. Vale para qualquer arte. Música popular, por exemplo: Caetano, Chico e Jorge Vercilo. Beatles, Stones e Bon Jovi. Por aí. Mas partamos daí para propor uma nova subdivisão, na categoria dos inventores. Entre os que 1) geram uma tradição (Jobim, por exemplo) e 2) orbitam num universo tão próprio, tão original, que é impossível fazer algo seguindo de onde eles pararam.
Esses caras me fascinam especialmente. Caras como Arrigo Barnabé, Astor Piazzolla, Frank Zappa... e Dorival Caymmi. Caymmi contou isso muitas vezes: sempre foi um intuitivo (ao contrário de Arrigo, Astor e Frank, que estudaram música profundamente). Para achar os sons que tinha na cabeça, depurados de intensas audições de Debussys e Ravéis, ele simplesmente tirava os dedos de uma corda do violão e botava noutra, para ver como soava. Assim, com paciência e abraçado na invenção, criou um mundo de paisagens sonoras e visuais. Alguém já disse: as canções praieiras de Caymmi (que são o que mais importa da sua exígua obra, na qual não há nada que não seja, se não genial ou ótimo, ao menos bom) não são canções, são curtas-metragens.
Busque as suas gravações de voz e violão, quaisquer delas. Ninguém fez nada parecido antes ou depois. As harmonias de O Mar, décadas antes da bossa nova, têm um nível de surpresa que hoje, em 2014, depois de mais de meio século de versões simplificadas (ou padronizadas), quase nos ocultaram. O mesmo para umas boas 20 das menos de cem canções do sujeito. Se houve, em algum lugar ou momento, um compositor popular de música impressionista, este alguém foi Dorival Caymmi.
Amicíssimos do sujeito que morreu sem jamais ter tido um inimigo, tanto Tom Jobim quando Radamés Gnattali, maestros soberanos, diziam que tinham aprendido muito com Caymmi. E Dorival, que muito conviveu com ambos, não aprendeu nada com nenhum deles. De onde saía aquilo é um dos mistérios da criação. Um mistério tão grande quanto um sujeito ser genial tanto na intrincada sofisticação da já citada O Mar quanto na obra-prima da concisão zen (como João Gilberto gostaria de ter escrito esta canção) de uma de suas últimas músicas: Maricotinha, cuja letra resume uma vida:
"Se fizer bom tempo amanhã eu vou. Mas se, por exemplo, chover... Não vou. Diga a Maricotinha que eu mandei dizer que eu não tou. Se fizer bom tempo amanhã eu vou. Mas se, por exemplo, chover... Não vou. Uma chuvinha... redinha... aí piorou! Nem tô: não vô."
> Quem foi
Dorival Caymmi alcançou o reconhecimento nos anos 1930, na voz de Carmem Miranda em O que É que a Baiana Tem. À época, era um compositor de marchinhas e toadas, pintor e trabalhador que pulava de emprego em emprego em Salvador - até se mudar para o Rio, em 1937. "Quem não gosta de samba/ Bom sujeito não é", de sua canção Samba da Minha Terra, tornou-se um dos versos icônicos da música brasileira. Lançou o primeiro LP em 1954, depois de vários álbuns de 78 rotações e anos de trabalho no rádio. Deixou menos de cem canções registradas e discos como Sambas (lançado originalmente em 1955), Caymmi e o Mar (1957), Ary Caymmi - Dorival Barroso (1958) e Setenta Anos (1984).