O tradicionalismo deu espaço para a cultura hip hop. O Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, o Harmonia, que há menos de um mês estava recheado de piquetes e gaudérios, neste final de semana ficou repleto de rimas e de mensagens de diversidade. Isso porque o espaço abrigou o Rap in Cena, no sábado (15) e no domingo (16).
No total, foram mais de 60 atrações, que se dividiram em três palcos que funcionaram simultaneamente, em mais de 24 horas de shows. Assim, passaram pelo evento nomes do rap de diversas gerações, como Racionais MC’s, MV Bill, Da Guedes e Rafuagi, que já têm décadas de estrada, assim como Djonga, Filipe Ret, L7nnon, Cristal e Matuê, representando a juventude da cena.
O show do Racionais MC's era o mais esperado da noitede domingo e começou por volta das 20h, praticamente esvaziando os demais setores do Rap in Cena. A maior parte dos participantes do evento se concentrou em frente ao palco World para ver o grupo paulista liderado por Mano Brown tocar. Os artistas entraram no palco com um dançarino mascarado e um cronômetro na tela, contabilizando a uma hora que eles se apresentariam como um uma bomba em contagem regressiva.
A multidão ovacionou o grupo, que enfileirou hits, abrindo a noite com Eu Sou 157. A música foi cantada pelos artistas que tiveram como coro os estimados 15 mil espectadores da segunda noite do evento. Um dos grandes momentos do show foi quando Brown cantou Capítulo 4, Versículo 3, com a plateia toda levantando as mãos e entoando as rimas juntamente com os artistas. Diversos outros hits do grupo foram enfileirados, deixando os presentes vidrados no palco.
— Como mudou o Rio Grande do Sul. Talvez tenha sido o lugar que mais mudou no Brasil nestes 30 anos. Porto Alegre, quem te viu, quem te vê. Já quis morar aqui — contou Brown aos presentes, emendando Negro Drama na sequência, levando a galera ao delírio.
Rafa Rafuagi, que esteve envolvido no evento desde a sua concepção, em 2014, comemora a grandiosidade atingida pelo Rap in Cena neste ano e destaca que o festival, agora, se equipara com os grandes realizados internacionalmente, abrindo diversas oportunidades de emprego para pessoas da periferia.
— Isso mostra que a cultura hip hop tem cumprido um papel na sociedade fundamental, gerando dignidade através do trabalho e renda para pessoas que também são da periferia. Vejo isso como fundamental. E, para mim, o mais importante é isso, o hip hop deixar um grande legado, eu acho que isso é legado. Esse evento foi histórico — destacou ele, que se apresentou no domingo.
Também no domingo, mais cedo, após um show recheado de clássicos, como Estilo Vagabundo e 3 da Madruga, que empolgaram a plateia, o artista recebeu a reportagem em seu camarim. O artista viu com empolgação a questão do Rap in Cena acontecer em Porto Alegre, já que considera a Capital como um local que produz bons eventos ligados a cultura urbana, na qual o hip hop está inserido.
— Eu já tinha visto o Rap in Cena de longe, mas essa é a primeira vez que eu participo. Quando eu fui chamado para participar, conheci o Kenni (Martins, idealizador do evento) e ele me falou o porquê estava me chamando: pelo fato dele ser fã e de respeitar meu trabalho, mas, sobretudo, por eu ser um dos caras que ajuda arquitetar o hip hop pela minha atividade, pela minha idade, pela minha história. Eu achei isso fantástico vindo dele — explica o músico.
— É incrível ver pessoas de várias idades cantando a nossa música. É o reflexo do trabalho forte que fizemos e, também, do poder da música, que atravessa gerações e fronteiras — enfatizou Nitro Di, vocalista do Da Guedes, que se apresentou no palco World no sábado.
Para Cristal, que também subiu ao palco World no sábado, a experiência foi “incrível” e, mesmo já tendo participado de outros festivais, estar no Rap in Cena é “muito gratificante”:
— Ser reconhecido pelo nosso trabalho do lugar onde a gente veio tem um valor muito especial. E, para mim, eu sempre valorizei a função de trocar com os mais velhos, com quem tem mais vivência. E eu acho que tem isso dos dois lados, de ambos se ouvirem. E o Rap in Cena trouxe essa mistura para a gente.
O idealizador do Rap in Cena, Keni Martins, avalia que o evento foi "muito bem" e se consolidou como o maior festival de cultura de hip-hop que o Brasil já teve e sem deixar de focar na inclusão, com lista free para pessoas trans e cortesias para melhores alunos das escolas públicas.
Ainda sem números consolidados, Keni não acredita que a meta das cem toneladas de alimentos será arrecadada, mas espera que, pelo menos, entre 50 e 80 toneladas sejam acumuladas, por meio do ingresso solidário. Já na questão de público, o Rap in Cena deve conseguir colocar as 30 mil pessoas que eram idealizadas — no sábado, foram 15 mil confirmadas.
— Então, as expectativas foram cumpridas — comemora.
Assim, com 15 mil pessoas por dia, o evento dá um grande salto, visto que o Rap in Cena nasceu de maneira modesta, em 2014, em um dia de shows no Império da Zona Norte. De lá para cá, o festival foi tracionando e ganhando espaço, inclusive, ganhando um palco dedicado ao evento no Planeta Atlântida. Para efeito de comparação, a última edição do evento, em 2019, colocou 7 mil pessoas no Pepsi on Stage — neste ano, foi o dobro. Por dia.
Ainda sem data para acontecer, o Rap in Cena deve retornar em 2023.