Recuperando-se em casa após ser tratado da covid-19 por 12 dias no Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre (HPS), o cantor e compositor Nei Lisboa lançou no dia 8 de abril uma campanha de financiamento coletivo. Após bater a meta inicial, o projeto agora deve custear seu novo álbum. Aos 62 anos, o músico também planeja retomar em breve a série Nei em Casa e (ao) Vivo, em que realiza lives caseiras aos sábados.
No dia 13 de março, Nei anunciou nas redes sociais que ele e a esposa, Cíntia Belloc, testaram positivo para covid-19. Na ocasião, o músico salientou que estava bem, com sintomas mínimos, saturação normal e acompanhamento médico. Porém, ele precisou ser internado no HPS no dia 18, quando foi constatado que estava com comprometimento pulmonar. Desde que teve alta do hospital, no dia 30, Nei se dedica a sessões de fisioterapia pulmonar.
Após não ser selecionado para o edital Prêmio Trajetórias Culturais — Mestra Sirley Amaro, o cantor queixou-se publicamente. Destinada a artistas e profissionais da cultura, a iniciativa da Secretaria Estadual da Cultura e do Instituto Trocando Ideia visa a reconhecer 1,5 mil nomes que contribuíram para o fomento da arte no Rio Grande do Sul. Os vencedores recebem R$ 8 mil pela Lei Aldir Blanc.
Em manifesto publicado em seu site oficial, Nei disse estar espantado com o resultado do edital. "Em um universo tão amplo quanto o de 1.500 selecionados, e qualificados exatamente por sua trajetória cultural, deixar de fora nomes como o de Santiago, Frank Jorge, Luiz Carlos Borges, Luis Vagner, Tonho Crocco, Fughetti Luz – e o meu, sim – soa como uma ostensiva provocação", escreveu.
Em nota, a Sedac ressaltou que, "diante das inúmeras manifestações de descontentamento com a lista preliminar de classificados", estaria "tomando as providências necessárias para garantir a validação justa do resultado final". A secretaria garante no comunicado que o processo de avaliação e classificação de cada uma das 1,5 mil trajetórias selecionadas será "rigorosamente fiscalizado e auditado, de acordo com os princípios constitucionais que regem uma concorrência pública, quais sejam isonomia, legalidade, impessoalidade, moralidade, igualdade, publicidade, economicidade e eficiência, probidade administrativa, vinculação ao instrumento convocatório e julgamento objetivo". Leia a nota na íntegra.
Por conta desse episódio, Nei decidiu promover um financiamento coletivo que definisse, como escreveu no manifesto, seu "valor artístico e cultural". "Preciso me livrar dessa angústia periculosa, sem descuidar também da asfixia de bancar o aluguel e a conta de luz", justificou.
A campanha está na plataforma Benfeitoria, com o título "Quanto vale uma trajetória?" e meta inicial de arrecadação de R$ 7.999. Entre as recompensas iniciais, estavam uma arte da campanha que seria enviada por Cíntia e a realização de uma live para os apoiadores.
Nei atingiu a marca inicial em pouco tempo. A nova meta passou a ser de R$ 30 mil, tendo como finalidade bancar a gravação e a mixagem de um EP digital acústico, com quatro faixas inéditas e participações dos músicos a distância. O lançamento seria realizado até setembro, com prioridade de download gratuito para os apoiadores. Para este projeto, é possível doar valores como R$ 20 ou R$ 50. A campanha ficará no ar até as 23h59min do dia 10 de maio.
Em entrevista a GZH, Nei falou sobre o período com covid-19, sua internação no HPS, a campanha de financiamento coletivo e suas perspectivas para o restante do ano.
Como têm sido as últimas semanas desde que você deixou o HPS?
Ontem (dia 13), completei duas semanas da alta. Já foi um pedaço da recuperação. Já fez uma diferença. Acredito que estou bem encaminhado. Quando saí do hospital, estava com o fôlego bem curto. Venho fazendo fisioterapia respiratória com uma profissional, com exercícios diários. Estou levando uma vida praticamente normal. Às vezes dou umas caminhadas curtas na rua. Que o processo não é a jato, disso eu já sabia, ainda mais para quem teve um quadro como o meu, de 50% de comprometimento pulmonar. A expectativa é que eu volte a 100% como estava antes. Mas é um processo de semanas e meses. Vou levando dia após dia, contente de estar sempre melhorando.
Aos poucos, vai se recuperando.
É uma doença muito louca. Covid-19 atinge cada pessoa de um jeito. É muito nova. A medicina ainda tenta entender como funciona. A gente fica na expectativa, um pouco no escuro. A experiência prática (da recuperação) está se revelando muito boa. Estou cantando já, mas só na hora de um esforço maior que eu sinto a diferença na respiração.
Como foi seu período no hospital?
Foi uma experiência de vida, embora não recomende para ninguém (risos). Tive a oportunidade de ver em um momento crítico da pandemia, com sistema de saúde colapsando, esse trabalho maravilhoso de quem está levando nos ombros este país. Se dependesse do governo federal, a gente estaria muito pior. Então, esses profissionais de saúde me emocionaram muito. É chavão, mas, olha, ver os caras dobrando plantão e firmes na paçoca, levantando o ânimo e a moral de quem estava sofrendo, segurando o osso... Para mim, foi importantíssimo ver que o maior sistema de saúde público do mundo (SUS) é de uma riqueza. Algo único que temos aqui, talvez o que nos resta em termos de uma dignidade socializante pública.
Foram momentos difíceis?
Eu passei umas boas. Passei 12 dias lá. De início, foi bem complicado. Chegou a ser cogitada uma intubação. Cheguei próximo disso. Ainda bem que o quadro reverteu e, dali para frente, tive uma curva de recuperação fantástica. Entre quatro e cinco dias, recebi alta. Vivi momentos extremos lá. Meu pequeno drama é uma gota dentro desse oceano de tragédias anunciadas e patrocinadas pela ausência de um governo que administre uma situação dessas. Que tenha coragem de ir à frente e fazer o que tem que ser feito. Governo negacionista de m****. Vi dramas, vi gente agonizando do meu lado, que depois soube que morreu mesmo. (Silêncio por alguns segundos). Vi ao vivo aquilo que a gente vê todos os dias em números.
A diferença é que estes números passaram a ter rosto para você.
É, vi um pouquinho o que o pessoal da saúde vê o tempo todo. Não sei como seguram, pois é desesperador.
Antes de você ser internado, como estava sendo lidar com a covid-19? Que momento te levou à internação?
Fiz uma burrice tremenda. Depois do quinto dia que eu e minha esposa nos contagiamos, achei que a gente estava bem. De fato, ela ficou bem e não teve mais sintomas. Comigo, os sintomas deram uma regredida. Só que na hora crítica, que tu não podes vacilar, tens que fazer exames. Porque vinha a fase inflamatória. Fui tosco, mesmo. Estava tendo acompanhamento médico a distância, mas não é fácil para o médico fazer um exame mais acurado de seu quadro respiratório. Eu deixei passar. "Febrinha não está passando, tá abaixo de 38ºC, mas tudo bem. Mais um dia, perdi o apetite, mas ok." Tem uma coisa terrível dessa doença, é que a gente não percebe o quadro respiratório: facilmente tu compensas com uma frequência respiratória maior e não se dá conta. Eu não sentia falta de ar. Até que pelo nono ou décimo dia, percebi que a coisa estava piorando. Oxímetro começou a baixar, mesmo. Então, acabei indo para o hospital e já fiquei internado.
Antes de pegar covid-19, como estava sendo o período de pandemia para você?
Foi um ano muito difícil em termos de trabalho. Praticamente extinguiram a nossa profissão. O único lockdown efetivo neste país foi esse (o da profissão). Ao mesmo tempo, consegui compensar de alguma forma com um pouco de trabalho online, algumas lives privadas. Me ocupei muito alegremente com a programação semanal da série Em Casa e (Ao) Vivo, em todos os sábados. Essa live se tornou um programete. Estava sendo muito agradável de fazer, as pessoas estavam curtindo muito. Creio que no mês de maio esteja de volta. E a gente se manteve dentro de casa, cumprindo todos os protocolos, usando máscara. Mesmo assim, não adiantou. Não sabemos onde foi o vacilo. Como diz o Atila Iamarino (biólogo e divulgador científico), o vírus não vem caminhando.
Você está preparando um novo EP, por financiamento coletivo. Como surgiu esse projeto?
O que inspirou a campanha foi o Prêmio Trajetórias Culturais, a polêmica em torno dele, o fato de não ter levado o prêmio, que, para mim, seria importante neste momento, não só simbolicamente. Então, decidi tentar ser premiado (pelo financiamento coletivo), mas com bom humor, sem ficar me lamuriando. A primeira meta era de R$ 7.999,00, no caso, R$ 1 a menos que o prêmio do edital (risos). Só que a meta foi batida em menos de 24 horas. Agora (dia 14) já chegou a R$ 16 mil. Eu não tinha uma segunda meta prevista ou recompensa. Não dá para editar as recompensas na plataforma. Mas me pareceu ser possível chegar a essa segunda meta de R$ 30 mil tendo um mês pela frente. Seria o suficiente para gravar um disco. Tenho um material pronto. Pelo menos um EP seria possível fazer dentro da pandemia. Gravando de forma caseira e a distância com outros músicos que mandariam suas partes de casa. Depois, uma mixagem de estúdio profissional, com técnico. Achei interessante como uma recompensa dar um sentido maior para esse valor extra da campanha que está se apontando.
Você imaginava tamanho retorno em tão pouco tempo?
Eu não tinha ideia. Sou bem cético. Estava me preocupando que a primeira meta fosse muito alta.
Então, a ideia do EP surgiu especialmente para a segunda meta?
Sim, surgiu agora. Antes, a recompensa era só enviar uma arte da campanha que a Cíntia Belloc (esposa) fará e realizar uma live para os apoiadores.
O que lhe pareceu essa recusa que você recebeu do edital Prêmio Trajetórias Culturais, da Lei Aldir Blanc, efetivado pela Secretaria da Cultura do RS?
Tornou-se um debate interessante. Acho importante às vezes botar para fora as coisas. Teve um viés de antagonizar a classe artística uns contra os outros que não me agradou. Tem que ficar claro antes de mais nada, ao menos da maior parte de quem estava se queixando, que a política de cotas não é nenhum favor. É uma coisa essencial. Não está sendo questionada. Perder para cotas, para mim, é uma alegria.
Acontece que este edital tem uma particularidade de ser de um universo de 1,5 mil premiados com nome de trajetória cultural. Ele gerou assim uma geração toda que vem lutando para sobreviver com sua atividade artística há 30 ou 40 anos, e que tem notoriamente uma significação forte dentro da cultura daqui. Foi um baque de duas formas. Uma é a simbólica da falta de reconhecimento. Poxa vida, tudo que batalhei até aqui pelo meu reconhecimento e não caibo dentro de 1,5 mil premiados. Outra é que estamos todos quebrados. Do pipoqueiro da porta à grande estrela da canção. Todos estamos quebrados, há mais de um ano sem trabalho. Quem sabe com um pouco mais de aporte e de recurso, tivesse sido mais sensato até uma distribuição plena e sem concorrência, que não gerasse esse atrito dentro de uma classe que já está baqueada. Já não bastasse os palcos fechados, se as pessoas começarem a brigar umas com as outras vai ficar dificílimo.
O edital tinha uma série de questões técnicas mal resolvidas. Da minha parte, dei por encerrado o assunto na hora que a campanha de financiamento se mostrou bombando. Acho que a campanha mostrou que os recursos estão mais bem destinados a outros que não têm essa alternativa (arrecadação por financiamento coletivo) que eu tive de tão rapidamente encaminhar para resolver meu lado de outra forma.
Quais são os seus planos para o restante de 2021? Quais as suas perspectivas?
É muito difícil fazer planos, porque o país não tem agenda. Acho que vou me ocupar bem com essa ideia do EP e da volta das lives, que é uma coisa que, se possível, quero levar para além de qualquer pandemia. É uma experiência muito legal. E aguardar os acontecimentos, o que a vacinação vai nos apresentar até meados do ano, se vai acelerar ou não. Em que situação estaremos em meados do ano? Vamos ver em que momento a coisa vai se mostrar segura para voltarmos com uma agenda de shows ao vivo. Estou louco para fazer isso.
A saudade pega nesse sentido, não? A falta de contato direto com o público.
Nossa, a saudade é grande. Mas é difícil de se programar.