Contando a história de um dos discos seminais do rock gaúcho, o livro Sem Nenhuma Direção: DeFalla, 1987 foi lançado em março pela Badejo Editorial. Apelidado de Papaparty, o álbum de estreia do DeFalla trouxe clássicos como Não Me Mande Flores e Sobre Amanhã, sendo o ponto de partida de uma banda marcada por seu caldeirão sonoro e, sobretudo, por sua criatividade.
Sem Nenhuma Direção foi escrito a quatro mãos por dois professores da UFRGS de fora do Estado: o antropólogo catarinense Emerson Giumbelli (que assina como Emerson G) e o psicólogo mineiro Frederico Machado (Fred M). A inspiração para a obra veio de uma série de livros em língua inglesa intitulada 33+1⁄3, da editora Bloomsbury, que a cada volume analisa um disco. Ambos cresceram lendo a revista Bizz e ouvindo DeFalla. Então, a dupla decidiu unir suas experiências em pesquisa para produzir um livro que examina as letras e as sonoridades do primeiro disco da banda porto-alegrense, trazendo também o contexto político e musical em que o lançamento de 1987 está inserido.
Para a obra, Emerson e Frederico coletaram horas de entrevistas com os integrantes da banda e outros personagens do cenário musical dos anos 1980. Abordam as bandas de ex-integrantes, como Urubu Rei e Fluxo, assim como a atmosfera efervescente do Bom Fim naquela época. Sem Nenhuma Direção apresenta também o contexto do rock brasileiro em 1987, que vivia um período de maior investimento das gravadoras — Papaparty saiu pelo selo Plug, então pertencente à RCA.
Criada em 1985, a primeira formação do DeFalla contava com Carlo Pianta (baixo), Edu K (vocal e guitarra) e Biba Meira (bateria). Pianta deixaria a banda e, em seu lugar, entrariam Castor Daudt (guitarra) e Flávio "Flu" Santos (baixo), completando a formação do primeiro disco.
Emerson atesta que Papaparty é um encontro de trajetórias diferentes. É um disco que traz identidades e referências múltiplas: pós-punk, funk, soul, punk rock, new wave, um psicodelismo dark, enfim, um liquidificador de aspirações. Uma metralhadora giratória que seria característica do DeFalla ao longo dos anos — inclusive na figura de seu camaleônico frontman, Edu K. O antropólogo sublinha que elementos do hip hop já aparecem em Papaparty — scratch, sample e rap —, o que era pioneiro para o rock nacional.
— É um álbum que diz muito sobre essa voracidade daquela geração, que não tinha internet, mas mesmo assim era muito ligada. Estavam buscando uma sintonia com coisas que rolavam fora do Brasil — analisa Emerson.
Fred reforça que, além da tecnologia e das fontes musicais, a banda tinha certo olhar para o comportamento, já de forma amadurecida:
— Em entrevistas com a gente, o Edu K sempre comentava que, para o DeFalla, o trabalho era muito mais do que a música. Tinha toda uma questão de comportamento envolvida ali. Naquela época, a banda já participava de performances teatrais, tocando ao vivo.
Amor, antiamor e liberdade
Para Fred, Papaparty expressa o imaginário de um período em que o Brasil recém havia saído da ditadura, ainda sem eleições diretas. Era uma sociedade querendo se modernizar e se tornar mais livre. Um reflexo dessa época pode ser observado em Tinha um Guarda na Porta, uma das três composições do poeta Paulo Seben no disco.
— Era a ditadura, mas ao mesmo tempo uma luta com aquele moralismo da época. Então, se tem um sentimento que esse disco passa é esse anseio por liberdades. Claro, de maneira interpretativa, eles não falam disso diretamente. Tinha um Guarda na Porta traz uma dualidade: o guarda externo, que era a repressão da ditadura, enquanto o guarda interno era essa moral que o Defalla aborda muito, tanto com o Edu K se vestindo de mulher como nas letras e até na liberdade para testar sons — explica Fred.
Emerson ressalta que o DeFalla não vinha com uma proposta de discurso, ao contrário de grupos como Engenheiros do Hawaii, que elaboravam suas ideias de forma praticamente literária.
— A liberdade se afirmava de várias maneiras, inclusive nisso de encarar a letra como algo com o qual não tinham compromisso. A letra era secundária, abria espaço para o inglês, menos a ver com a mensagem e mais a ver com a musicalidade das palavras — diz o antropólogo.
Porém, vale ressaltar que um dos principais hits do disco, Não Me Mande Flores, trata de um relacionamento abusivo. Composta por Castor em um ensaio da Urubu Rei, a letra foi escrita pela vocalista da banda, Luciene Adami (que, mais tarde, se consolidaria na carreira de atriz). É um olhar feminino interpretado visceralmente por Edu K. Uma música de antiamor, assim como outras do disco.
Há outros exemplos em Papaparty: o DeFalla discorre abertamente sobre sexo em Sodomia e reflete sobre as relações em O Qué Icho ("Por que amar desse jeito?/ Sentimento imperfeito/ Desenfreado, atirado contra nenhuma direção").
— É uma característica do DeFalla: falar de amor, mas de uma maneira não romântica — sublinha Emerson.
No fim, o disco de estreia do Defalla rompeu portas. Serviria de inspiração não só para bandas locais, mas também do cenário nacional dos anos 1990 — como Planet Hemp, Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A.
— Papaparty trouxe muitas possibilidades musicais, tanto de misturas inusitadas quanto no experimento de recursos eletrônicos — pontua Fred.
Sem Nenhuma Direção: DeFalla, 1987
- De Emerson G e Fred M
- Badejo Editorial, 2021
- 128 páginas, R$ 39
- Onde comprar: pela loja online Produto Oficial ou na Livraria Taverna (Rua dos Andradas, nº 736 - Térreo da Casa de Cultura Mario Quintana)