Por Josely Teixeira Carlos
Pós-Doutora em Análise do Discurso e Música pela Paris X. Doutora em Letras pela USP/Sorbonne. Pesquisadora da USP, com mestrado e doutorado sobre canção popular. Site: discosediscursos.wixsite.com/josyteixeira
“Vamos salvar o pensamento de alianças com carrascos (...) que, na voz que o mundo te arranca, vale é o tanto quanto lavras a utilidade das palavras.” Em 2001, da primeira à última faixa do disco Cena Beatnik, Nei Lisboa conclamava o ouvinte a adentrar o milênio com um posicionamento crítico, como lemos na letra de A Utilidade das Palavras, uma das mais significativas canções do cantor, compositor e escritor.
Sem muito a comemorar na passagem do século, a persona central da obra do artista gaúcho relia as décadas anteriores da história do país (como em E a Revolução) e sua inserção no sistema neoliberal (em Produção Urgente), ao mesmo tempo em que também antevia o futuro árido, decorrente das assimetrias desse mesmo sistema (em Máquinas de Fazer Máquinas e Zarpar pro Futuro).
Como narrador-personagem e observador-testemunha, em Cena Beatnik, o Nei homem, que viu e viveu experiências duras narradas pelo Nei autor (homenageando, em E a Revolução, seu irmão mais jovem, Luiz Eurico Tejera Lisbôa, desaparecido político brasileiro cujo corpo foi localizado no final dos anos 1970), dá ao seu leitor/ouvinte 46 minutos de oportunidade para reflexão.
Quase duas décadas depois, aos 61 anos de idade e com 11 discos gravados, em tempos de confinamento devido à pandemia, surge um novo Nei Lisboa. Nas últimas semanas, o cancionista, acompanhando a conjuntura mundial do campo artístico, tem utilizado a tela da internet como palco, a exemplo de manifestações como a que vem fazendo o canadense Neil Young.
No projeto Nei em Casa e (ao) Vivo, realizado a partir de seu site (neilisboa.com.br), Nei vem publicando textos e vídeos, divulgando clipes e fazendo lives para seus admiradores. Nesse projeto, se sobressaem outras esferas de sua produção não tão conhecidas do público (como a que ele já apresentara em crônicas quinzenais escritas anos atrás para Zero Hora). No primeiro vídeo lançado nas redes, o próprio Nei anuncia que, neste momento, ele será muito mais do que o compositor. Será “um misto de operador, cantor e comunicador”.
Nessa empreitada, além de mostrar produções novas de sua autoria (Pandora, Nós É que Vivemos, Bom Lugar e Capitão do Mato), algumas das quais vinham sendo apresentadas ao público desde o ano passado, quando comemorava 40 anos de carreira, ele tem analisado, pela voz escrita e falada, a situação política e social do Brasil e da cena internacional.
O mesmo Nei, a pessoa, que pendura prateleiras na parede do novo apartamento, revela e desvela, enquanto pensador, suas impressões do mundo contemporâneo, em textos que são uma imbricação de comentário jornalístico, crônica literária e diário pessoal.
Um dos mais emblemáticos artigos do site é Alienável Mundo Novo, no qual Nei descreve a insanidade que passou a ser a rotina de todos a partir da covid-19, com o aumento vertiginoso e assustador do número de óbitos a cada dia. Ecoando evidentemente o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, e citando o biólogo Átila Iamarino, o artista chama a atenção para um desenho de futuro em que, passada a fase de pandemia, “percorreremos um longo e titubeante caminho” até chegarmos a um lugar outro, onde a vida como antes se conhecia já não existirá mais.
Dialogando também com A Revolução dos Bichos de George Orwell, Nei apresenta ao público o quadro A Fiscal da Pandemia, no qual, através do olhar e voz de sua cachorra (que tem nome de gente, Elisabete Wanderléa), avalia o cenário local e global. Com graça, ironia e sarcasmo tão característicos de sua produção, aproveita para tirar um sarro do estilo youtuber de ser, e ele mesmo dubla a fala de Bebete Wandeca, que com a sua sapiência animal faz recomendações aos humanos que teimam em não seguir os protocolos de confinamento.
Se a verve refinada e crítica está presente em todos os discos de Nei, desde a estreia com Pra Viajar no Cosmos Não Precisa Gasolina, de 1983, o que o internauta pode ver no Nei nascido na quarentena é um cancionista que ultrapassa os limites do discurso da música cantada. É um cancionista que vira comentador do seu tempo (o que ele já faz tão plenamente em seu cancioneiro há quatro décadas). O novo Nei passa a exercer papéis múltiplos, o cantautor cronista dos fatos e fakes do cotidiano, o que já o anuncia como um dos mais lúcidos analistas do panorama político-social interno da atualidade. Leia os textos de Nei e comprove você mesmo.
Mas, afinal, qual a função de um artista da canção? Em tempos de pandemia e distanciamento social, experiência de proporção jamais vivida pelas nossas gerações de brasileiros, e em uma época de excesso e pulverização de informações, a intervenção criativa de Nei Lisboa, materializada nas redes, cumpre o papel de tirar o leitor/ouvinte da apatia do cotidiano. É uma espécie de farol, que ilumina e guia o webespectador. O cantautor gaúcho, sendo muito mais do que um artista da música popular, nos dá ouvidos para escutar e olhos para ver, mas principalmente nos chama para voar, enquanto a gente permanece com “essa louca, eterna e mais antiga vontade de se abraçar”, como ele retrata na letra clarividente da canção inédita Chamando pra Voar.