Todas as cidades têm alma própria, mas poucas são efetivamente especiais. Pelotas é uma delas. Sem falar nos que já conhecemos bem, e ainda outros, só uma cidade especial produz artistas cosmopolitas como Juliano Guerra e Mateus Porto, que estão lançando novos discos. Neura é o terceiro de Juliano (em 2015 comentei aqui o segundo). Canto é o primeiro de Mateus (que estreou com um EP em 2012).
Nascido em Canguçu, Juliano chegou adolescente a Pelotas e antes do trabalho solo integrou como guitarrista uma banda de rock e como violonista um grupo de choro e samba. Cursou Letras na UFPel. Formado em violão na mesma universidade, Mateus nasceu em família de músicos, entrou cedo no centenário Conservatório de Música de Pelotas, começou acompanhando artistas locais e desde 2014 vive em São Paulo.
"Não tenho pretensão de inovar qualquer coisa, de ser vanguarda, apenas faço canções", disse Juliano em uma entrevista, completando: "Os cancionistas que me interessam são os que escrevem sobre experiências pessoais, como Sérgio Sampaio, Leonard Cohen, Lou Reed, o próprio Belchior". Em Neura, que genericamente fala sobre as aflições e neuroses do homem contemporâneo, as letras são uma porrada, às vezes quase depressivas e claustrofóbicas. Trecho de Gratiluz: "Compartilhe! Denuncie!/ Corrija o mundo inteiro com o seu textão/ Seu recalque, seu limite/ Subversivo@com/ Ganhe likes, coma alpiste/ Destrua o sistema como um meme bom". De O Sonho: "Avisa aos senhores e madames/ Que tranquem o condomínio dos seus sonhos/ Eu vi passar um enxame medonho/ De maltrapilhos querendo revanche".
TRABALHOS TRAZEM DIVERSIDADE DE RITMOS
E assim por diante. Letras densas e intensas, ácidas, envoltas em um instrumental pesado, bem contemporâneo (guitarras e percussões marcantes), e cantadas com voz pequena, joãogilbertiana, tom quase de fala. O samba é uma constante, mas tem baião e milonga, às vezes há ares tropicalistas e da vanguarda paulista – por acaso (ou não?), uma das músicas tem a participação da cantora Ná Ozzetti. Entre os ótimos músicos destacam-se Davi Batuka (percussão), Miro Machado (violão) e Rael Valinhas (baixo, órgão). As canções Ano Bom e Só têm a parceria de Mateus Porto e aparecem também em seu disco, gravado em São Paulo, com versões bem diferentes. A instrumentação do álbum é enxuta, só violão de Mateus e o baixo de Neymar Dias. Na milonga Inquieta Calma, parceria com Victoria Saavedra, aparece o acordeom de Paulinho Goulart.
Juliano assina ainda as letras de mais duas canções de Mateus. Além da música citada, a colombiana Victoria é parceira também de Vendaval Errante, igualmente com versos em espanhol.
Compositor consistente e sofisticado dentro do que eu chamaria de Nova MPB, Mateus resume suas influências no jazz, na música brasileira e na música da região do Prata, como milonga e chacarera. Apesar do título do disco, ele não canta. Sábio e atento, chamou para interpretar suas músicas duas cantoras brilhantes e com carreiras próprias: a paulista Tatiana Parra e a sul-mato-grossense (radicada em São Paulo) Thamires Tannous, que fazem o diferencial do trabalho. A última faixa é o clássico Gracias a La Vida em solo de violão. Enfim, com seus DNAs pelotenses, Juliano Guerra e Mateus Porto são grandes revelações da música do Rio Grande do Sul.
NEURA
De Juliano Guerra
Escápula Records, CD simples R$ 15, caixa especial 3D (com óculos) R$ 35 em escapularecords.com.br.
CANTO
De Mateus Porto
Escápula Records, R$ 25 em escapularecords.com.br.
ANTENA
A VIDA AGITADA DA SUPERFÍCIE
Da Orkestra do Kaos
De uns bons tempos para cá, Arthur de Faria não me surpreende, pois espero dele o melhor e ele sempre traz o melhor. Sua nova “aventura”, com músicos roqueiros jovens e a partner (e filha) Maria Antônia de Faria, ultrapassa os velhos tempos do Arthur de Faria & Seu Conjunto com energia elétrica, sem perder a chave da universalidade e da brincadeira séria. Da primeira faixa, a tétrica Desenchufado, de Vitor Ramil, em versão ruidosa e suja, até a última, a platina Portuñol (parceria com Omar Giammarco), o disco desafia o status quo musical com guitarras em chamas e ampla diversidade – tem rock, samba, tango, milonga, música cigana etc., tudo em alta voltagem e letras inteligentes. Maria Antônia é um diferencial, reposiciona a voz de Arthur, e a gurizada, Erick Endres, Lorenzo Flach, Bruno Vargas e Lucas Kinoshita, é demais. Fora os convidados, como Kiko Dinucci. Independente, R$ 15 na página de Arthur no Facebook.
TODO AMOR
De Ju Rosenthal
Mais um disco registrando a emergência da nova geração do samba e choro de Porto Alegre surgida na segunda metade dos anos 2000. Cantora, compositora e cavaquinista, Ju é casada com o compositor, arranjador e multi-instrumentista (bandolim, cavaquinho, violões) Elias Barboza, produtor deste primeiro álbum. Ela começou aos oito anos, aprendendo violão, e é graduada em música pelo IPA. Tornou-se cantora em uma turma de muitos instrumentistas. O centro do trabalho de Ju é a tradição brasileira: sua bela voz, com boas letras, passeia por diferentes estilos de samba, choro, valsa, baião e até uma canção de espírito caymmiano e ares de milonga, Fui pro Mar, de Elias, autor da maioria das faixas, duas delas instrumentais. O grupo de músicos é enxuto, Elias e a percussão de Fernando Sessé mais participações de Matheus Kleber (piano, acordeom), Eliseu Rodrigues (clarinete) e Inês Rosenthal (violino). Independente, R$ 25, no Facebook de Ju.
CONTOS TOCADOS COM TEMPO
De Sergio Olivé
Quando, de tempos em tempos, aparece um disco do pianista Sergio Olivé, já sei que vem música boa. O primeiro é de 1995, depois saíram outros em 2001 e 2010 (este com a violoncelista Marjana Rutkowski). Argentino formado em música em Buenos Aires e desde 1988 radicado em Porto Alegre, premiado no Açorianos de Música e no Festival de Cinema de Gramado, Olivé tem participado de várias formações e atividades em música erudita e popular como instrumentista, compositor, arranjador, regente e professor. Neste álbum de piano solo ele desenvolve trilhas sonoras para diferentes histórias/pequenos contos, cujas insinuações de texto estão no encarte. A proposta é levar o ouvinte a uma viagem sonora em paisagem onírica ou real. São oito itinerários, entre eles O Ladrão do Tempo e Tudo o que Ela Não Disse Quando Disse Tudo Bem. Grande música e diversão para o ouvinte. Independente, R$ 30 no site sergioolive.com
Os álbuns aqui comentados estão disponíveis nas plataformas digitais.