Matriculado no Ensino Fundamental aos 23 anos, Marcelo Menezes já tinha visitado a Feira do Livro de Porto Alegre em 2022. Veio com a escola do bairro Guajuviras, em Canoas, para prestigiar a palestra de uma escritora. Não se compara a experiência que viveu na noite desta quarta-feira (1°), quando assistiu a uma batalha de rimas de perto pela primeira vez.
Os MC's sequer haviam encerrado a disputa encenada no palco de uma tenda erguida entre o Margs e o Memorial do Rio Grande do Sul, na Praça da Alfândega, diante de dezenas de estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA), e Marcelo já estava sem voz de tanto cantar.
— Olha essa rima, é muito boa. Chega a me arrepiar. Eles falam tudo o que a gente vive — vibrava o estudante da Escola Municipal Nancy Ferreira Pansera, que gosta de escrever poemas e sonha em ser professor de física.
Marca da cultura hip-hop, a batalha de rimas é um duelo musical baseado no improviso de versos. Quatro mestres de cerimônia (MC's) competiram uns com os outros a convite da rapper Negra Jaque, porto-alegrense do Morro da Cruz, que horas antes havia autografado seu primeiro livro, Linhas de Curas.
Tinham de compor a partir de temas escolhidos pela plateia. Sem tempo para pensar, os MC's Dente, Tds Drop, Afro Black e Fidel do Trem elaboraram versos sobre "estudar", "quilombola", "respeito", "liberdade", entre outros.
Quem saiu vencedora foi Tds Drop, 21 anos, que arrancou aplausos e assovios de apoio ao cantar versos rimados como: "Eu sou bonita/ Além de bonita, talentosa, estudiosa/ É nos livros que encontro minha vaidade/ E muito mais verdade".
Natural da Lomba do Pinheiro e afeita à literatura desde os oito anos, a jovem cantora tem nos livros uma fonte de inspiração para compor.
— É importante que eu tenha propriedade do que estou falando, e tenho propriedade a partir das minhas leituras.
A batalha se seguiu de um pequeno show de Negra Jaque. Aos 36 anos, a rapper agradeceu a família e todas as comunidades que vieram à Praça da Alfândega prestigiá-la.
Cada um de nós que estávamos aqui em cima do palco somos possibilidades de existência para alguém que não sabe quem é
NEGRA JAQUE
Rapper porto-alegrense, autora do livro de ensaios "Linhas de Cura"
— Quantas "quebradas" existem aqui hoje? Restinga, Partenon, Rubem Berta, Planetário, Areal da Baronesa, Capão Redondo... — citou no microfone, olhando para o público sentado nas cadeiras de plástico.
Além de reunir poemas e textos refletindo sobre vida e negritude, Linhas de Cura: Ensaios sobre Rap, Negritude e Outras Formas de Existir, recém-lançado pela editora Libretos (R$ 40), apresenta um dicionário da cultura hip-hop. Para a cantora, a obra consolida um novo estágio da carreira, voltado a celebrar o amor e outras coisas boas.
— Por isso chamei de Linhas de Cura. E o dicionário da cultura hip-hop só está sendo iniciado nesse livro. Quero que todos contribuam. O conhecimento não está só em mim. Todos que puderem colaborar, são bem-vindos.
Comemorando a presença de artistas do hip-hop na Feira do Livro de Porto Alegre, tradicional evento cultural do Rio Grande do Sul, Negra Jaque deseja que o convite seja feito outras vezes.
— Um evento como esse dá possibilidades de existência. Quantas formas de existir existem em Porto Alegre, mas são invisibilizadas? Cada um de nós que estávamos aqui em cima do palco somos possibilidades de existência para alguém que não sabe quem é ou está se construindo enquanto sujeito — refletiu.