A famosa série de livros brasileiros Vaga-Lume, criada pelo professor Jiro Takahashi, especialista no mercado editorial, completou cinco décadas de história no início de 2023. O projeto, que conta com 106 títulos e tinha como intuito incentivar o consumo da literatura infantojuvenil, marcou gerações de leitores e escritores (leia reportagem sobre a coleção).
Em seu auge, na década de 1970, os títulos eram leituras obrigatórias nas escolas. A reforma educacional de 1971 contribuiu para isso, já que além do ensino obrigatório ter sido estendido até a oitava série, aumentando assim o número de estudantes, foi incluída na Lei de Diretrizes e Bases uma cláusula que recomendava a preferência pela adoção de obras nacionais.
Para celebrar os 50 anos de história da Vaga-Lume, GZH conversou com cinco escritores gaúchos que foram leitores da série durante a infância e adolescência. Alguns, inclusive, descobriram o amor e a vocação pela literatura ao se aventuraram pelas páginas das histórias publicadas sob o selo.
Identificação com os personagens
O escritor, editor e designer gráfico Samir Machado de Machado, 41 anos, conheceu os livros do projeto na biblioteca de sua escola. Assim que iniciou a leitura, ele se identificou com as histórias e com os personagens.
— Era atraente para jovens leitores como eu por oferecer protagonismo a crianças da minha idade e, mais importante, da minha cultura: seus protagonistas eram crianças brasileiras, com nomes iguais aos dos meus amigos, vivendo em lugares parecidos com aqueles onde eu vivia — relembra.
Machado diz que ainda se recorda de algumas histórias, mesmo que, às vezes, os enredos delas se misturem e se confundam.
— Me recordo de alguns livros como O Rapto do Garoto de Ouro, Um Cadáver Ouve Rádio, O Escaravelho do Diabo. Eu tinha uma preferência pelos livros de Marcos Rey e seus mistérios detetivescos. E também por Éramos Seis, que eu e minha irmã lemos porque queríamos saber o final da novela — conta.
O jornalista e escritor Fernando Favaretto, 46 anos, também conheceu os livros da Vaga-Lume durante sua época de estudante. Quando estava na quarta série, teve acesso à primeira obra da coleção, A Ilha Perdida.
— A leitura fluiu muito rapidamente, não conseguia deixar de ler, a narrativa me prendeu muito. No entanto, à medida que percebi que estava acabando de ler, fui demorando mais, lendo com menos frequência, porque não queria que aquela história acabasse, queria continuar tendo a companhia daqueles personagens, daquela ilha tão especial, tão misteriosa — relata.
Para Favaretto, a série o ajudou a compreender a leitura como algo prazeroso e surpreendente. Assim como Machado, ele também considera que se aproximava mais dos títulos pelo fato de os protagonistas terem a mesma idade que ele tinha na época.
— Muitas das histórias tocam em temas como amizade, afeto, relações familiares. Então, fui aprendendo a gostar de ler sobre assuntos que tanto quanto estavam próximos de mim, também podiam fazer parte de realidade distantes — conta Favaretto.
Relação com as obras
O escritor, poeta e colunista de GZH Fabrício Carpinejar, 50 anos, recorda que tinha 13 anos quando conheceu as obras. Por indicação dos seus professores, ele e seus colegas começaram a ler os primeiros títulos na Biblioteca Pública do Estado, no centro de Porto Alegre.
— Assim que descobri esses livros, fiquei fascinado porque eles eram extremamente surpreendentes. Havia uma narrativa curta, sempre com suspense, sempre com desdobramento afetivo. A linguagem era clara e acessível — avalia.
A escritora Carol Bensimon, 40 anos, descreve que sua relação com as obras começou por exigência de uma docente do colégio João XXIII, onde estudava, na zona sul da capital gaúcha:
— A professora de português nos dava uma lista de livros, dos quais tínhamos que escolher alguns para ler. Depois disso, sentávamos individualmente com ela e ela nos perguntava coisas sobre a leitura. Alguns desses livros faziam parte da coleção Vaga-Lume. Tenho ótimas lembranças dessa época.
Já a escritora e colunista de Donna Claudia Tajes, 59 anos, conta que assim que descobriu o projeto, por indicação de suas professoras do Primário (atual Ensino Fundamental), teve certo receio.
— Confesso que eu implicava um pouco com eles (livros). Pretensiosa, achava as histórias muito infantis, queria ler os volumes de gente grande da estante dos meus pais. Também me incomodava um tanto os protagonistas serem quase sempre meninos — comenta.
Na fase adulta, Claudia passou a ter uma nova relação com as obras, ao ter de comprá-las para o filho Theo, que atualmente tem 29 anos:
— Quando o meu filho estava no colégio, acabei redescobrindo a coleção e passei a comprar os títulos mais aventurescos para ele. Alguns dos meus preferidos, todos lidos tardiamente: Éramos Seis, O Feijão e o Sonho, O Escaravelho do Diabo e A Ilha Perdida.
Escola de escritores
Passadas algumas décadas, Carpinejar observa a importância da obra Menino de Asas, de Homero Homem, que viria a influenciá-lo como poeta — mesmo que ele não soubesse disso na época. A história provoca reflexões sobre como é nascer diferente e traz lições a respeito de perceber a vida além das aparências.
— Isso me marcou profundamente como poeta. Ficava pensando como reagiríamos se tivéssemos asas, como que as esconderíamos. E a gente passa a vida fazendo isso, podando as asas, né?! Cortando como se fossem unhas para que ninguém note essa nossa diferença. Temos o privilégio de nascer diferente, mas muitas vezes queremos ser iguais aos outros — reflete.
O passar dos anos também fez com que Favaretto refletisse sobre o impacto do projeto em sua vida. Para ele, a Vaga-Lume também ajudou na aquisição de bagagem cultural e despertou o interesse pelo jornalismo e pela educação, áreas nas quais ele trabalha atualmente.
— Muitos personagens de várias histórias são jornalistas, que investigam crimes, que tentam desvendar mistérios. Em outras histórias, somos levados a cidades e países nos quais nunca havíamos pisado e isso se apresenta como motivação, desperta nossa curiosidade — exemplifica.
Favaretto também ressalta que pôde conhecer importantes autores que influenciaram seu trabalho literário por meio da coleção.
— Conheci a produção para adultos de autores como Marcos Rey e Marçal Aquino depois de os ter lido através da Vaga-Lume. Marcos Rey, inclusive, é um grande escritor, que tem uma produção vasta tanto para o público juvenil quanto para o adulto e que merece ser muito mais lido do que é.
Assim como Favaretto, Machado acredita que seu gosto pela leitura nasceu, em grande parte, a partir do consumo dos livros da coleção.
— A Vaga-Lume foi importante na minha formação como leitor e escritor por ter sido, talvez, o único projeto de que me lembre então de uma literatura brasileira popular de aventuras, voltada para o leitor jovem: mistérios policiais, ficção científica, ilhas perdidas — destaca. — Todo leitor da minha geração tem um débito com seu criador, Jiro Takahashi, que também fez a Para Gostar de Ler, outra coleção que me marcou.
Já Carol avalia que o projeto de Takahashi a fez descobrir sua vocação para a escrita de romances policiais:
— Aqueles livros também me mostraram que era possível contar histórias envolventes. Nessa época, eu já tinha vontade de escrever e rabiscava algumas coisas, em geral histórias policiais. E isso nunca saiu de mim.
Apesar de não ter tido uma relação tão próxima com as obras quando jovem, Claudia também reconhece o legado da coleção e a importância que teve para várias gerações, incluindo a de seu filho.
— A Vaga-Lume é uma porta escancarada para a literatura — resume.
Trajetória da série
Lançada em janeiro de 1973 como um projeto ligado à editora Ática, a Vaga-Lume se tornou referência de literatura infantojuvenil. O livro de estreia, A Ilha Perdida, de Maria José Dupré (1898-1984), é até hoje o recordista, com 5 milhões de exemplares vendidos.
Outras obras lançadas pela coleção que se popularizaram foram A Turma da Rua Quinze, de Marçal Aquino, Menino de Asas, de Homero Homem e O Escaravelho do Diabo, de Lúcia Machado de Almeida.
Com a compra da Ática pela Somos Educação, foi anunciada a modernização da coleção. Ainda como resultado da nova gestão, em 2015, o departamento editorial do selo Vaga-Lume foi extinto. Nessa mesma época, foram também relançados 10 títulos da série com novos projetos gráficos.
Em 2018, a Kroton comprou a Somos Educação pelo valor de R$ 4,6 bilhões. Com isso, ficou sob o controle da empresa brasileira uma rede de ensino, editoras de livros didáticos e soluções educacionais para o ensino.
Após 13 anos sem haver uma publicação inédita de alguma obra pelo projeto, em 13 de outubro de 2020, foi lançado Ponha-se no Seu Lugar, de Ana Pacheco, que é uma releitura do conto clássico O Nariz, de Nikolai Gógol, de 1836. O título conta com projeto gráfico do ilustrador Bernardo França.
Produção: Filipe Pimentel