É besteira falar que jovens não leem. E se a afirmação é verdade na atualidade — conforme Regina Zilberman, professora de Literatura da UFRGS especializada em literatura infantojuvenil —, imagine quando smartphones, streaming e redes sociais eram uma realidade longínqua. Naquela época, um dos maiores aliados da imaginação das crianças e dos adolescentes eram os livros. Dentro daquele contexto, uma das coleções literárias que mais impactaram os jovens brasileiros foi a Série Vaga-Lume, que em 2023 completa 50 anos formando e influenciando leitores e autores. Após cinco décadas e com duas adições recentes ao catálogo, a coleção segue com o propósito de estimular as crianças e jovens a ler (veja depoimentos de escritores que foram leitores da coleção).
— A série formou um contingentes de leitores, muita gente, e influenciou outros autores que foram aparecendo a partir daí, que não publicaram pela Vaga-Lume, mas vieram a ter importância na literatura. Fomentou tanto a formação de leitores quanto de escritores — explica a professora Regina, citando Pedro Bandeira e João Carlos Marinho como exemplos.
Os livros da Vaga-Lume tinham em torno de 120 páginas, ilustrações e um suplemento didático com atividades — uma atração a mais, que estimulava a circulação nas escolas, segundo Regina. Porém, apesar do foco no público escolar (com idade entre 10 e 14 anos), os livros não circulavam apenas nesse espaço. Ao todo, 106 títulos foram publicados.
Conforme Jiro Takahashi, editor dos livros da Vaga-Lume de 1973 a 1984, a editora logo percebeu uma necessidade de preços acessíveis — os livros nunca poderiam custar mais do que uma revista semanal.
O auge da Série Vaga-Lume foi nos primeiros anos da década de 1980. De um lado, a coleção recuperou obras de Lúcia Machado de Almeida, Maria José Dupré e autores que foram revitalizados, sobretudo nos anos iniciais. Por outro, também revelou grandes escritores.
O autor mais popular, que era originariamente roteirista e escritor de livros para adultos, foi Marcos Rey. Com suas histórias sobre vida urbana e policialescas, tornou-se um best-seller. O escritor foi o que mais publicou livros pela série — foram 16 títulos, entre eles O Mistério do Cinco Estrelas (seu primeiro, com cerca de 2 a 3 milhões de exemplares vendidos) e Um Cadáver Ouve Rádio.
Fenômeno literário
Para entender o fenômeno da coleção infantojuvenil é preciso compreender o contexto em que ela surgiu. Era 1973 quando o primeiro livro foi publicado, como resultado do crescimento da Editora Ática, que estava focada em investir em livros destinados ao público escolar. O ensino brasileiro recém havia passado por uma reforma em sua estrutura, em 1971, que criou o primeiro e o segundo graus e tornou obrigatória a frequência até os 14 anos. Havia, portanto, uma massa de estudantes e uma grande carência de materiais de leitura, salienta a professora Regina.
A Ática conseguiu compreender essa circunstância e lançou uma série de livros destinados a esse grupo. Com o preenchimento dessa lacuna, o sucesso veio. Além disso, outros fatores foram decisivos para catapultar a coleção: nos anos 1960, teve início um processo importante de renovação da literatura brasileira para crianças, que, até então, estava estagnada. Conforme Regina, esse ramo teve um desenvolvimento impressionante, que se mantém até hoje.
A série também valorizou livros de aventura e fantasia, em lugar de obras com intuito educativo, predominantes na literatura infantojuvenil à época — como livros para transmitir ensinamentos, boas maneiras, moral ou patriotismo. Além desses, eram oferecidos aos jovens clássicos da literatura brasileira do século 19 — dos quais já se cansavam, visto que se tornavam datados e não condiziam com uma juventude ainda sem internet, mas antenada à modernidade.
— A coleção foi fantasia pura, imaginação, aventuras, tanto com os livros mais realistas, que se passavam na atualidade, como os do Marcos Rey, quanto com as histórias fantásticas, como as de Lúcia Machado de Almeida — avalia a professora.
Portanto, a série preencheu uma lacuna não apenas para o público, mas para o tipo de leitura. A Vaga-Lume ocasionou uma revolução, o que justifica sua importância na literatura brasileira.
— Todos os leitores da Vaga-Lume têm até hoje recordações das mais positivas. É uma coisa muito associada à adolescência dos brasileiros, eles têm lembranças muito boas, uma grande saudade dessa coleção — complementa.
Saudosismo
O escritor mineiro Luiz Puntel escreveu, ao todo, sete livros que foram publicados pela Vaga-Lume. O primeiro foi Deus me Livre!, em 1984, e o último, O Grito do Hip-Hop, com Fátima Chaguri, em 2005. Com a pandemia, o professor de oratória e redação tornou-se mais atuante nas redes sociais. Lá, recebe retornos de leitores, hoje adultos, sobre os livros.
— Depois de 50 anos passados, tem coisas muito interessantes. Alunos lá da década de 1980, que na época tinham 14 ou 15 anos, por aí, inclusive um juiz de Passo Fundo, entraram em contato comigo, vários. "Você é o Puntel, que escreveu o livro assim assado?", perguntam. "Eu sou." "Nossa, você me escreveu uma carta lá em 1980", e o sujeito tem a cara guardada até hoje. É muito curioso, no sentido de, poxa, eu fiz uma diferença para aquele menino. Tenho muitas histórias assim — relembra Puntel.
O autor conta que algumas obras ainda têm vendas significativas apesar de narrarem uma época sem as tecnologias atuais. Na opinião do escritor, os livros sempre foram bem recebidos porque a Ática utilizava um sistema de divulgação "imbatível": as sinopses dos originais eram enviadas para algumas escolas para receber feedbacks de alunos. Takahashi concorda que utilizar os leitores potenciais para a seleção dos livros foi um dos segredos que contribuíram para a boa aceitação da série. O outro foi o suplemento de trabalho.
Quando a editora solicitava uma obra, o escritor sempre abordava um problema social. As produções eram compostas por um texto ágil, com ação já na primeira página e muito diálogo — uma espécie de roteiro cinematográfico, segundo Puntel.
— Eu sabia que para escrever para jovens tinha de ser um livro ágil. Na época, a gente só concorria com televisão, nem games tinha assim — acrescenta.
Cada uma das obras publicadas pelo autor é motivo de orgulho.
— É uma alegria muito grande, justamente porque, aos 74 anos, eu me renovo sempre que alguém diz que leu os meus livros ou que me convida para fazer palestras nas escolas, que ainda estão muito fortes, então é um prazer — destaca.
Contudo, um deles sofreu censura em uma escola: Meninos Sem Pátria, lançado em 1981, logo após ser assinada a Lei da Anistia, que permitiu o retorno dos exilados pela ditadura militar. A narrativa foi criada a partir do relato de Thereza Rabêlo, esposa do jornalista José Maria Rabêlo, em Memória das Mulheres no Exílio. Durante 30 anos, o autor falou sobre o livro por todo o Brasil, inclusive no RS. Ele lembra que a obra dificilmente teve rejeição em escolas. Entretanto, durante a campanha presidencial de 2018, um grupo de pais de um colégio católico do Rio de Janeiro pediu que o livro fosse banido da escola. Puntel atribui o episódio à polarização nacional.
— Eles fizeram pressão dizendo que o livro era comunista, porque o padre que tem no livro diz para o menino que Jesus também foi um guerrilheiro que lutou e foi morto. Houve protestos, e a diretoria decidiu suspender o livro — conta o autor, ponderando que a escola poderia ter optado por manter a obra e levar a discussão para a sala de aula.
O futuro da Vaga-Lume
Mais tarde, outras editoras e autores, como Pedro Bandeira, também passaram a investir no mesmo formato e a ganhar destaque. Assim, a coleção, que foi um enorme sucesso durante algum tempo, posteriormente sofreu com a concorrência. A Ática (e, consequentemente, a Vaga-Lume) foi, aos poucos, perdendo seu impulso.
Para Regina, a coleção não perdeu público por falta de interesse, mas pela falta de livros. De 2008 a 2020, nenhuma obra foi lançada. Assim, eles acabaram desaparecendo do mercado.
Em 2015, entretanto, após rumores de um possível fechamento, a editora renasceu, adquirida pelo grupo Somos Educação. Em seguida, a Vaga-Lume voltou repaginada. Atualmente, 60 títulos da coleção estão disponíveis. Há ainda 17 títulos (de um total de 25) da série Vaga-Lume Júnior, desdobramento que surgiu no final dos anos 1990, voltada exclusivamente para o público infantil.
E apesar de a Vaga-Lume ter marcado gerações e ainda existir nas bibliotecas escolares, dois professores de escolas ouvidos pela reportagem avaliam que não veem mais os jovens aderindo às histórias como antigamente e que não há um apego emocional. Eles atribuem isso a fatores como uma concorrência maior, com livros mais novos, chamativos ou "da moda", bem como ilustrações clássicas e histórias que se tornaram datadas, voltadas a um público que não existe mais, pois os jovens mudaram.
Por outro lado, buscando dar continuidade à série, duas novas histórias foram agregadas à coleção recentemente: Ponha-se no Seu Lugar, de Ana Pacheco, em 2020; e Os Marcianos, de Luiz Antônio Aguiar, em 2021.
— Passados 50 anos, a série Vaga-Lume permanece sendo uma referência entre as publicações infantojuvenis. Muitos dos títulos se consolidaram como clássicos do segmento e ultrapassaram gerações de leitores. Sempre recebemos mensagens de crianças e jovens que tiveram a oportunidade de ler alguns títulos e passaram a ser fãs da coleção, o que demonstra o vigor do acervo e a atemporalidade dos temas — avalia Julio Cesar Santos, gerente editorial da Somos Educação.
Conforme Santos, a série segue com o objetivo de estimular a leitura nos jovens, apresentando obras com temas capazes de estabelecer diálogo com a geração atual. Ele acrescenta que há previsão para um novo processo de análise de originais a partir de 2024, e o resultado dessa curadoria poderá direcionar futuras obras para a série Vaga-Lume ou outras coleções. Nesse contexto, novos autores poderão ser considerados, assim como autores já consagrados.
Takahashi ressalta que é gratificante para os autores e todos que participaram da criação da série saber que os livros cumpriram seu papel essencial.
— No mundo atual, quando tudo parece rápido demais, urgente demais, volátil demais, ver algo durar tanto tempo é muito impressionante. Ainda mais quando esse algo duradouro ocorre com livros — afirma. — E a memória dos que leram vem sempre carregada de muito afeto porque são livros que, de alguma forma, eles carregam dentro deles. Enfim, é o leitor que justifica a existência do livro.
Confira alguns sucessos da Série Vaga-Lume
- A Ilha Perdida, de Maria José Dupré (o mais vendido, com mais de 5 milhões de exemplares)
- O Mistério do Cinco Estrelas, de Marcos Rey
- Um Cadáver Ouve Rádio, de Marcos Rey
- O Escaravelho do Diabo, de Lúcia Machado de Almeida
- A Turma da Rua Quinze, de Marçal Aquino
- Meninos Sem Pátria, de Luiz Puntel
- Tráfico de Anjos, de Luiz Puntel
- O Caso da Borboleta Atíria, de Lúcia Machado de Almeida
- Deu a Louca no Tempo, de Marcelo Duarte
- Açúcar Amargo, de Luiz Puntel
- A Guerra do Lanche, de Lourenço Cazarré
- Menino de Asas, de Homero Homem