A malemolência típica dos mistérios de Agatha Christie e Arthur Conan Doyle e o rigor histórico que é típico da literatura do gaúcho Samir Machado de Machado ditam o tom do novo romance do autor, O Crime do Bom Nazista (Todavia, 128 páginas, R$ 59,90 o livro impresso e R$ 39,90 o e-book), que chegou às livrarias no início de março. Um livro de entretenimento mas comprometido com a reflexão, como ele destaca.
Cunhada na ficção, a obra repete a fórmula clássica da literatura policial: um crime acontece, alguns suspeitos se sobressaem, e um investigador precisa desvendar o mistério junto com o leitor. Só que tudo isso dentro de um dirigível LZ 127 Graf Zeppelin que está cheio de passageiros nazistas quando parte de Pernambuco em direção ao Rio de Janeiro, em outubro de 1933, para concluir o percurso iniciado na Alemanha. O voo foi real, assim como as ideias condenáveis defendidas por muitos dos personagens do livro, o que leva a trama ficcional de Machado a flertar com a realidade para recuperar os horrores do regime nazista.
O enredo começa com um jantar, no hall do dirigível, que serve para apresentar os principais personagens ao leitor: Bruno Brückner, um policial que se sente eximido de qualquer culpa por apoiar Hitler "apenas para combater a corrupção", ignorando os crimes do regime; a baronesa Van Hatten, uma perua preconceituosa e defensora de ideais supremacistas; o Dr. Vöegler, um médico racista que mobiliza falsas "evidências científicas" para justificar o nazismo; Mr. Hay, um jovem crítico de arte inglês que parece não conseguir decidir se é um conservador ou um libertário; e Otto Klein, um importador de café que demonstra não se encaixar no ambiente dos demais.
Os cinco protagonizam uma refeição intermediada por diálogos sobre supremacia branca, antissemitismo e outros ideais nazistas que avançam em escalada na conversa, até chegar a um ponto em que o leitor está prestes a ficar ansiado com a leitura. É difícil acompanhar a leva de absurdos que saem da boca dos personagens, mas eles cumprem importante função: todas as barbaridades ditas no jantar são toleradas com naturalidade pelos personagens, como se não houvesse problema algum em proferir o ódio, até que, no fim da noite, uma pessoa morre. Com isso, Machado faz um alerta sobre como tolerar o intolerável pode acabar mal, seja em 1933 ou nos dias atuais.
— Parece que novamente se tornou aceitável que políticos e pessoas públicas façam discursos anti-humanistas. Isso é horrível, é algo que já vimos acontecer em outras sociedades e que sempre conduziu à catástrofe — reflete Machado.
A dose de atualidade não se esgota na triste constatação apontada por ele, pois os diálogos que marcam a parte inicial do livro — e que podem levar o leitor ao asco — não são puras criações. Apesar de ilustrarem uma história sobre nazistas em 1933, as falas dos condenáveis personagens de O Crime do Bom Nazista estão mais próximas de 2023 do que se pode imaginar à primeira leitura, conforme explica o autor.
— Os diálogos dos personagens são absurdos, mas curiosamente todas aquelas coisas foram ditas durante os anos de governo Bolsonaro. Eu queria colocar esses nazistas de 1930 falando coisas que foram ditas por bolsonaristas, e que se encaixam perfeitamente na boca de um nazista — explica Machado. — Quando a baronesa cita Goebbels, ela cita a versão que o Roberto Alvim (ex-secretário de Cultura) fez do discurso do Goebbels. Quando Vöegler fala dos homossexuais com ódio, ele usa palavras que o Bolsonaro usou. Quando o crítico de arte reclama da "arte degenerada", ele repete coisas que o Mário Frias disse quando era secretário de Cultura.
Mesmo com incursões dispostas a levar à reflexão, a obra conduz muito bem o caminho pela investigação do crime ocorrido — é um excelente romance policial, além de compromissado com o tempo de quem o lê. Fica aos cuidados do policial Bruno Brückner a missão de descobrir quem foi o autor do assassinato sem chamar a atenção do restante da tripulação do Zeppelin, passando a limpo, junto ao leitor, as possíveis motivações de cada um dos suspeitos.
É neste ponto que a história ganha ares de Agatha Christie — e não somente pelo fato de o crime ocorrer em um ambiente fechado com um grupo heterogêneo de possíveis autores. Machado evoca o estilo literário da autora inglesa ao narrar os interrogatórios comandados por Brückner com os suspeitos, cada um deles em um capítulo. A divisão permite ao autor trabalhar sem parcimônia o perfil de cada um desses personagens, dando elementos para que o leitor faça suas apostas sobre o desfecho do mistério.
Encerrada a parte prática da investigação, o policial começa a juntar as peças para desvendar o crime. E é aí que o autor evoca características narrativas de outro expoente da literatura policial, Arthur Conan Doyle, para dar andamento ao desfecho. Bebendo na fonte do criador de Sherlock Holmes, Machado introduz um flashback eletrizante que leva o leitor a "colocar os pingos nos is" a cada nova página lida, até chegar à última.
É lá, na última página, que ele explica sem rodeios a controvérsia que chama a atenção já no título da obra, O Crime do Bom Nazista. "Como assim bom nazista?". É isso que vem na cabeça ao ver a capa amarela com ilustração de Giovanna Cianelli que orna o livro, mas quem o lê até o final descobre o que o autor quis dizer com isso. E redescobre junto um dos maiores encantos da literatura: sua capacidade de entreter anda ao lado da de fazer pensar, como defende Machado.
— Toda a literatura, por mais aparentemente descompromissada que seja, sempre vai ter um fundo ideológico.