Contar histórias é um ofício complexo, ainda mais quando se trata daquelas que descrevem a realidade e as pessoas que nela vivem. Para alguns, como os renomados biógrafos Ruy Castro e Lira Neto, retratar a vida de alguém se trata de uma arte — para Ruy (autor de biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues), no sentido de que ela pode ser bem escrita, embora acredite que o estilo nunca pode suplantar a informação. É, ao mesmo tempo e sobretudo, uma ciência, pois exige técnicas.
Mesmo dando sua chancela, Lira Neto (autor da biografia em três volumes sobre um dos mais célebres gaúchos da história do Brasil, Getúlio Vargas), por sua vez, é mais cauteloso: recorrendo a um empréstimo de um título de Virginia Woolf (A Arte da Biografia), abre também uma porta para uma discussão antiga sobre o fazer biográfico ser, de fato, uma arte.
Ambos os autores, entretanto, concordam que tal arte pode ser aprendida. E é a isso que se propõem em A Vida por Escrito: Ciência e Arte da Biografia (184 páginas, R$ 64,90), novo título de Ruy Castro, e em A Arte da Biografia: Como Escrever Histórias de Vida (192 páginas, R$ 64,90), livro de Lira Neto, ambos coincidentemente lançados em dezembro pela Companhia das Letras. Também em comum entre eles, a paixão pelo fazer biográfico e pela transmissão desse ensinamento. Com este objetivo, os autores compartilham nas obras segredos do ofício, buscando guiar o biógrafo em potencial ou amantes de biografias interessados nessa jornada.
Entre a arte e a ciência
Além de biógrafo autodidata, Ruy Castro é jornalista e escritor. Em outubro, por ocasião da morte de Sérgio Paulo Rouanet, foi eleito para a cadeira 13 da Academia Brasileira de Letras (ABL), um reconhecimento de sua contribuição para a literatura que é motivo de orgulho. Aos 74 anos, o autor continua com o mesmo "entusiasmo e tesão" pelo trabalho e afirma que não deseja parar nunca — e A Vida por Escrito trata-se de um testemunho desse sentimento, como ressalta.
A obra exalta a arte de pesquisar e reconstituir a história, seja de uma pessoa, de um lugar ou de uma época.
Já na abertura, efetua um resgate histórico da biografia através dos séculos. Em seguida, busca responder o que é uma biografia. Nos próximos capítulos, passa por todo o processo de composição de uma obra biográfica, com sugestões e orientações que incluem desde a escolha de um personagem para biografar, como pesquisar, encontrar fontes de informação, apurar e organizar o material, até, por fim, escrever o livro e editá-lo.
Para ele, a biografia serve ao propósito de revelar a vida de alguém capaz de influenciar outras vidas. Ela, ao mesmo tempo, situa essa pessoa no espaço e tempo, fornecendo uma visão panorâmica de sua existência.
— Toda boa biografia nos ensina alguma coisa útil para nossa vida — destaca.
De fácil leitura e cativante, a obra responde dúvidas e busca apresentar soluções para os problemas. Ruy — um dos responsáveis pela modernização do gênero biográfico no Brasil, de acordo com Lira Neto — mescla sua vivência pessoal e profissional com técnicas e conhecimento, tornando o livro, além de um guia, um relato de sua experiência. Compartilha também bastidores de seus trabalhos, abordando, por exemplo, como foi lidar com a família dos biografados, que costumam enxergar apenas as características positivas do parente.
— Só o biógrafo conhece o biografado por todos os lados — ressalta Castro.
O maior desafio por trás do ofício, argumenta, é descobrir quem são as fontes a serem entrevistadas e como chegar a elas, dado que a maioria das biografias retrata pessoas do passado, que já morreram. Os contemporâneos que restaram do sujeito, portanto, costumam ser idosos e, na maioria dos casos, difíceis de localizar. Porém, Castro garante que este também é um dos fascínios do trabalho — e fornece técnicas de como fazer boas entrevistas para facilitar a missão.
Além dos caminhos ensinados no livro, Castro fornece uma dica para quem deseja seguir a carreira de biógrafo: ter fascínio por descobrir informações e não descansar até chegar a elas, já que, em uma biografia, não se pode inventar ou imaginar acontecimentos. Portanto, sem informação, não há biografia.
Com as orientações, Castro indica uma trilha a ser seguida para construir conhecimento e se juntar ao mundo da biografia. E o momento é o mais propício para tal: em sua visão, o Brasil nunca teve tantos bons autores dedicados ao gênero. Lira Neto, podemos afirmar, é um deles.
Uma arte?
Quando Lira Neto ministrou cursos sobre escrita criativa de não-ficção, com foco em biografia, a procura foi grande. Ele percebeu, então, que a maior parte das oficinas oferecidas sobre escrita criativa remetia à ficção. Além disso, seus alunos solicitavam uma fonte de referência para consultas. Assim, nasceu o livro A Arte da Biografia. Como o curso, ele busca conciliar a experiência prática de Lira Neto como biógrafo com a teoria e as reflexões sobre o assunto.
Ao longo do livro, Lira Neto relata sua experiência, trazendo exemplos e curiosidades de suas produções, tais como Padre Cícero, Castello, Maysa, Uma História do Samba e Arrancados da Terra, além de situações vividas por ele. O autor inicia a obra explicando como se tornou biógrafo. Em seguida, também se debruça sobre a história do gênero, para, depois, entrar nos méritos do que pretende e o que pode a biografia, bem como a quem biografar.
Para o escritor e jornalista de 59 anos, a biografia é uma forma de compreender a história a partir da trajetória de determinados indivíduos, entendendo também de que modo a vida pública e a vida privada desses personagens se impactam mutuamente.
Mas Lira Neto ressalta que o objetivo não é reverenciar personalidades. Nada disso.
— É para entender como indivíduo e contexto interagem, como é que nós somos fruto das condições de nosso tempo e, ao mesmo tempo, em que medida nós somos capazes de interferir nesse tempo — pontua.
Para isso, o escritor fornece um guia de por onde começar a pesquisa — baseada em documentos, jornais, entrevistas, fotografias, entre outros arquivos históricos — e de como ler e organizar o material.
Além disso, ensina a olhar para o conjunto de fontes de forma criativa, não no sentido da ficção e invenção, mas da sensibilidade para conseguir captar nessa documentação, muitas vezes dura, elementos que permitam reconstruir o passado e uma narrativa de forma colorida, oferecendo ao leitor texturas, sensações, cores, visualidades, sonoridades de uma época e do contexto da vida de um personagem. Tudo isso, claro, aliado a suspense e a uma escrita envolvente, por meio de técnicas apresentadas para ajudar o narrador a tomar as rédeas e manter a atenção do leitor.
— A biografia é uma reportagem, uma grande reportagem e, portanto, ela precisa usar alguns artifícios narrativos que exploro e que detalho no livro — complementa Lira Neto.
Ao mesmo tempo, o autor aborda os limites éticos do biógrafo e propõe uma discussão sobre as limitações do próprio fazer. Ressalta que nenhuma vida cabe em um livro e é impossível resgatar todos os acontecimentos significativos de uma existência, visto que, muitas vezes, os arquivos tolhem as descobertas. Porém, o conhecimento da História é necessariamente baseado em vestígios, lembra o autor.
Para chegar até eles, é preciso ter senso de detetive, olhar de antropólogo e espírito de arqueólogo, como explica no capítulo quatro. Mais do que descrevê-los, deve-se saber interpretá-los e estabelecer relações, fazendo um mergulho não apenas na vida do biografado, mas em épocas, sociedades e culturas diferentes.
Cada biografia é cercada de dificuldades, cada uma à sua maneira. O jornalista ressalta que a escassez de fontes pode ser um obstáculo, bem como o excesso — caso da biografia de Getúlio, que arquivava toda sorte de documentos, relata Lira Neto, sendo este o seu mais desafiador trabalho até aqui. Há, portanto, o desafio da pesquisa exploratória da documentação sobre o biografado.
Após compartilhar suas técnicas para compor grandes obras sobre personalidades marcantes, o autor já se dedica a duas biografias — simultaneamente —, sobre dois personagens que considera "absolutamente desafiadores e diferentes entre si" e que, a seu ver, são interessantes para a compreensão do Brasil: Oswald de Andrade e Luiz Gonzaga.
Aliás, este é um dos critérios fundamentais no processo de escolha dos personagens, para o qual o autor também revela dicas: eles devem ser ambíguos e controversos, com uma vida cheia de sobressaltos.
— Porque se não, não tem graça. Se você biografar uma pessoa que fez tudo de bom na vida, ninguém vai querer ler esse livro, que vida chata, só foi bonzinho o tempo todo (risos). E ao mesmo tempo, você pintar alguém simplesmente como um vilão também é muito raso, porque todos nós somos atravessados por virtudes e vícios, por defeitos e qualidades. Então, a biografia tem de mostrar isso — afirma, defendendo que é preciso tirar o personagem do pedestal e fazê-lo caminhar no chão, ressaltando a sua essência humana.
Com ritmo e regado a referências a outros autores e intelectuais, o texto é, igualmente, um material com dicas preciosas e imprescindível para quem deseja se iniciar no gênero.