Por Ronald Augusto
Poeta e ensaísta, autor, entre outros, de “O Leitor Desobediente” (2020)
Não é exagero considerar que T. S. Eliot, com a publicação do poema The Waste Land, em 1921, inaugurou uma espécie particular de tradição no que diz respeito à economia dos significados que, por exemplo, dispositivos paratextuais podem ofertar à fruição e à imaginação do leitor diante de um conjunto de poemas. Toda a série de mensagens que acompanham e ajudam a explicar determinado texto – sobrecapa, títulos, subtítulos, introdução, notas de rodapé e assim por diante –, constituem formas de paratexto.
Essas notas ou comentários adjacentes ao poema tanto indicam promessas de sentidos a serem conquistados como, em certa medida, servem para instaurar uma contenção ao apetite interpretativo do leitor, isto é, para além das margens desse círculo de giz, a validade de algumas leituras pode ser objeto de suspeição. As anotações ao pé do poema, redigidas pelo próprio autor, às vezes nos advertem de que não se pode dizer qualquer coisa a seu respeito. O roteiro de referências ideado por Eliot ao seu gesto poético pavimenta o trabalho de leitura dos exegetas e também do leitor comum.
Sopaporiki, de Richard Serraria, incorpora à sua estrutura algo da vocação eliotiana relativamente ao livro de poemas concebido como a atualização de um conceito ou da circunstância histórica das ideias do poeta. Esse engaste conceitual nos flancos do poema se traduz em presença multifacetada de paratextos que Serraria atrai para o centro da criação com vistas a torná-lo mais propício a outras interações semióticas e epistemológicas.
Assim, a obra contém um minicatálogo de nomes de fraternos ancestralizados, artistas, intelectuais, sacerdotes da religiosidade de matriz africana, ativistas, enfim, referências e reverências a pessoas cujas leituras tornaram possível a existência do livro; em seguida há um prefácio preáfrico da escritora Eliana Mara Chiossi; e, além disso, os poemas ainda são antecedidos pelo texto paródico Machado de Shángô – Toques Iniciais do Tambor, em que se descortinam aos olhos do leitor as intenções ou o repertório simbólico e imagético-vivencial do verdadeiro autor da obra, a saber, o Sopapo.
Richard Serraria criou seu heterônimo, o Sopapo, esse ser batuqueiro resgatado ao presente pelas mãos do músico Giba-Giba. E esse heterônimo não faz poesia livresca, mas, sim, tamboralitura: transe poético-performativo que retroage à velha-guarda vanguardeira das orações de orixás, os orikis em feitio de transcriação, para repercutir e aflorar, mais adiante, em rosácea intertextual nos conceitos-compósitos Améfrica e pretuguês cunhados pela filósofa negra Lélia Gonzalez. Por fim, todo esse sistema de citações, mobilizado em Sopaporiki, é cuidadosamente enfeixado em forma de glossário amefricano de maneira a dissolver dúvidas e explicar passagens que talvez pareçam obscuras ou difíceis ao leitor não iniciado em seu corpo a corpo com o baticum dos poemas.
Por essas e outras razões é que o que está em causa em Sopaporiki não é apenas a consecução de versos bem logrados, nem o pacto com a noção retrô da “qualidade poética” decorrente da obediência às escolas e às escalas do cânone ocidental.
A experiência de linguagem presentificada por Serraria (ou por seu heterônimo) em Sopaporiki – que abole conjunções, maiúsculas, conectivos lógicos na perspectiva de transliterar o pretuguês, verdadeiro idioma poético –, não se apoia na estabilidade do signo verbal em sentido próprio ou convencional. É mais o signo verbal em pauta proliferante, como ícone, como design de formas sonoras, como palavra voando, pois, como a prática o demonstra, versos bons nos impelem à leitura em voz alta. O conceito de poesia investigado aqui não concorda com a máxima de Mallarmé segundo a qual tudo acaba em um livro (tout aboutit en un livre), porque, ainda que o magma de linguagem, a panglossia em “língua-chão” do Sopapo cancionista se encontre entre as capas de um volume, o que se dá a ouvir, da primeira à última página, é um tuque-tuque de ritmos oraculares, de corpos vocalizados, estilhaços canoros de falas em um recorrente (riocorrente) acabar-começar.
Os orixás urram para todo sampler.