Reconhecido pela prosa, Altair Martins estreia na poesia com Labirinto com Linha de Pesca (Diadorim Editora). O livro dá sequência a um processo de ampliação da atuação do autor, que tem 46 anos e recentemente escreveu as peças de teatro Guerra de Urina (2018) e Hospital-Bazar (2019), atuou no espetáculo Tango para Homens Velhos (2020) e participou da mostra de artes visuais O que Vemos, o que nos Fala (2019). Professor na PUCRS, autor de livros como o premiado A Parede no Escuro (2009), ele revela a seguir o que o levou à linguagem poética. E comenta a persistência dessa linguagem:
– Acredito que um poema seja um pedido de verticalização e pausa na linha horizontal de tanta produção sem pausa.
A entrevista foi realizada por e-mail.
Na Apresentação do livro, Diego Grando aponta que seus poemas são mais perceptivos do que narrativos, o que surpreende em se tratando de um autor de prosa. A poesia te deu algo que não encontravas em contos e romances?
A literatura se apresentou para mim ora por alguma poesia que vinha mimeografada ou ditada, ora pelos poemas de livros didáticos que a escola pública nos destinava por um ano. Sempre li e escrevi poesia, interessando uma função meio que de batismo. Se a lírica acrescenta algo a quem escreve, logicamente minha prosa aprende com isso, assim: dizer mais com menos, por exemplo. Creio que a potencialização da linguagem (no sentido matemático do termo) é vital, ainda mais nos tempos efêmeros em que vivemos. Mas sobretudo a poesia me dá um quê de imediato, à medida que o retorno pode vir após a leitura de um único poema. Entretanto há coisas que só podem ser ditas num conto, outras, num romance, outras, numa peça de teatro. Creio no romance como o gênero das relações humanas por excelência. O romance é uma maquete do mundo. No conto, a arte de narrar por vezes se sobrepõe a personagens. Já na poesia contamos com outro poeta que nos vai ler (acho que isso aí é de Armindo Trevisan). Há, portanto, cumplicidade, já que os chatos que entortam o nariz para a linguagem nem abrem livro de poesia. No fundo, os poemas que escrevo me surpreendem se mostram capacidades de expressão que eu não julgava alcançar. Daí um motivo de escrevê-los: os poemas ensinam que minha escrita é menos burra que eu.
O que te levou a criar em linguagens distintas nos últimos anos?
Amor à arte. Vivi a infância numa casa onde isso era coisa de outro mundo. Foram as escolas (todas elas públicas) que me ofereceram algo da cultura. Sempre desenhei (trabalhei como chargista), atuei desde a adolescência, estudei violino, pintura, trabalhei em barracão de escola de samba construindo alegorias. Aprender me deixa vivo. Costumo dizer que sou um estudante profissional. Tenho vergonha de ser burro e por isso o que não sei me intima. Meu rosto está no que ainda não conheço. Assim, parece natural que essa vontade de aprender esteja nas coisas que escrevo e pesquiso. Na PUCRS, abordo com meu grupo de estudos as possibilidades de intersemiose criativa: o que um campo sígnico pode suscitar em outro. Por exemplo: desde maio de 2020, publico um poema semanal no jornal Nova Folha, de Guaíba, cujo editor é o fotógrafo Valmir Michelon. Nunca imaginei que escreveria tanto em períodos tão curtos. O Valmir me manda uma foto (às vezes é outro fotógrafo parceiro, como Louis Scur Carrard), e faço dois movimentos: o primeiro é pura tautologia (dar conta de ver o que a imagem tem); o segundo é dar vazão ao que a escrita comunica. Da imagem (do que ela grita ou esconde) saem esses poemas.
O livro abarca diversos temas, entre os quais o lugar do sujeito no mundo e a precariedade de certas relações sociais, inclusive de trabalho. Como é abordar questões importantes no debate público pela via poética?
Acredito que escrever e ler poesia (qualquer poesia) é um ato de resistência nestes tempos de internet em que julgamos que estamos livres porque podemos escolher e inevitavelmente escolhemos o que já foi escolhido antes. Nesse sentido, a poesia é um embate contra o utilitário, contra o tradutor automático do Google: escrevemos, em linguagem torta, inutilidades que entretanto são a marca do humano. Rasuramos paradigmas e fazemos travas dialéticas justamente porque a dialética parece dissolvida neste mundo em que os efeitos especiais insistem em propor verdades obscenas nos telejornais e no cinema. Daí o porquê de o teatro resistir, ao meu ver como arte superior, porque aponta para a máscara e diz: somos atores num palco e isso aqui é só linguagem. (Estou confessando isso para um cinéfilo!) Acredito que um poema seja um pedido de verticalização e pausa na linha horizontal de tanta produção sem pausa. Se a escritura se deseja molotov, o poema tem que dizer com ponta de agulha aquilo para que despenderíamos muito texto. Por isso gosto da poesia engajada. Gosto de discutir trabalho, gosto de fazer mofar as ideias de progresso que são progresso só para alguns. Gosto da natureza. O que sinto mesmo é que a linguagem poética deva ser o passo ao lado, de onde se pode ver criticamente o rio-que-corre sempre faminto por novidade, sempre contemporâneo e doente, e exercer nossa dignidade – por exemplo: a língua. Escrever poesia é dar uma volta pela quadra, soprando um pouco desse português que cura, ainda mais quando somos afogados full time pelo cash flow das informações. Logo, a poesia é um dever de escritor. A poesia pode ser um não. A poesia pode, sim, fazer o nosso mea culpa. Quando escrevo, faço o meu.