Onde foi parar a nossa Porto Alegre enquanto nossos corpos estão em nossas casas?”
Essa pergunta está no texto introdutório de Porto Alegre em Quarentena, coletânea que apresenta poemas de 46 escritores vivendo na capital gaúcha ou de algum modo próximas da cidade, o que inclui os organizadores Camilo Mattar Raabe e Diego Grando e os editores do selo Figura de Linguagem.
“Com os corpos em risco, é preciso evitar os espaços comuns, as aglomerações. É preciso, portanto, evitar a cidade. (...) E assim restamos nós, nossos corpos em nossas casas, mais do que nunca conectados com o mundo – mas a nossa cidade, esse espaço compartilhado dos nossos deslocamentos e encontros cotidianos, onde foi parar?”
O que se lê nas 75 páginas desse recém-lançado e-book (que tem distribuição gratuita em PDF em editorafiguradelinguagem.com) são representações da vida sui generis imposta pelos acontecimentos de 2020. Alexandre Brito homenageia os profissionais da saúde; Armindo Trevisan reflete sobre a condição humana perante os desígnios da natureza; Denise Freitas resume: “A janela é tudo que sei do mundo/ a essa altura dos dias”.
A janela é uma imagem recorrente nas páginas do livro. Diego Petrarca: “a janela aberta/ para que/ o estreito/ do sol/ mantenha a/ relação com/ um corpo/ lá fora/ uma ilha/ em pleno/ apartamento”. A abertura pela qual se observa a vida lá fora surge como lugar de escape, do sonho da volta ao “normal”, mas também de medo – do pesadelo que uma pandemia e seus milhares de mortos representam. Mariam Pessah: “o feminicídio tem aumentado/ h o r r o r e s/ HORROR, sim!/ eu senti quando/ pela janela ouvi/ uma vizinha pedindo/ s o c o r r o/ m e a j u d e m”. Lucas Kruger, menos trágico e impotente: “Emaranhado em teu corpo/ decido não olhar pela janela”.
Entre outros colaboradores, estão ainda Guto Leite, Ricardo Silvestrin, Pedro Gonzaga, Eliane Marques, Ronald Augusto, João Pedro Wapler, Donaldo Shüler, Rafael Ban Jacobsen e José Eduardo Degrazia, este último exercitando a metalinguagem em uma ode à produção artística – uma postura política louvável em tempos de tantas brutalidades: “Em todos os poemas escritos nesses dias de inquieta solidão/ _e morte/ brilhará um sentido de humanidade que a todos justifica”.
No fim, uma frase de rodapé misturada a informações técnicas da obra reforça a conexão entre o real e sua representação poética: “Este livro foi produzido durante a pandemia de covid-19, enquanto o universo se expandia e a Amazônia ficava menor”.
Leia, abaixo, o poema de Diego Grando incluído em Porto Alegre em Quarentena.
Disperato Incantabile
Afflitto Ma Non Troppo
Por Diego Grando*
lorem ipsum fecha a porta
tem miojo no jantar
nostradamus
vós travais
eles trovam por wi-fi
quem tem boca fica em casa
quem tem cão caça com live
pandeguices
isquemias
esqueminhas confirmados
rivotril no dry martini
gardenal com aperol
hoje a rave clandestina é num galpão em ivoti
lorem ipsum segue o baile
vai à merda e volta atrás
como lidar
em tempos de
seno b cosseno a
cloroquina mon amour
no dos outros é refresco
quem furar o isolamento
não vai preso no quartel
vem roçar essa mãozinha
marinada em álcool gel
vem roçar na minha tela
ou eu faço um escarcéu
lorem ipsum vai no super
estocar papel higiênico
tem entrega que é do bem
tem delivery do mal
tomar sol na basculante
já virou lugar-comum
tomar água do chuveiro
não é novo nem normal
dormir cedo
acordar tarde
dormir tarde
acordar cedo
google meet
zoom zoom zoom
não passou um avião
lorem ipsum coisa e tal
*Poema incluído em Porto Alegre em Quarentena