Por Léa Masina
Professora da UFRGS. Crítica literária, doutora em Literatura Comparada
Novo livro de poemas de Pedro Gonzaga, o nome da parte que não dorme chama a atenção do leitor pelo título instigante que remete à intimidade da criação poética. Ele refere a condição do poeta que se divide e multiplica para expressar-se, conjugando, no poema, intuição, percepção e conhecimento. É através da sensibilidade humana que a poesia se manifesta para desestabilizar a realidade e dar testemunho de uma nova relação com o mundo.
Cifrada por natureza, para corresponder ao que Paul Zumthor considera uma lufada de ar no vazio, a criação poética é o desafio dos que pretendem o poema como arte da palavra. Pedro Gonzaga sabe disso: “aquilo que foi matéria/ voltará somente em palavra/ ou na certeza inútil da memória”.
A síntese expressa no poema arenales deixa claro que o poeta percorre a dimensão do lírico para colher o instante mágico em que a palavra preserva e evoca. Mergulhado na “cabine pornográfica/ inacessível aos outros/ prazerosa e constrangedora”, onde a poesia é gerada, Gonzaga constrói seu processo de autoconhecimento expondo o subjetivo no circunstancial. Seus versos oferecem ao leitor um novo olhar sobre a realidade, o olhar do homem que avalia o seu tempo pela vertente da memória afetiva, revendo fatos, pessoas e coisas e extraindo a poesia dos acontecimentos. Disso resulta que diversos episódios e insights sobre o que viveu e vive expressam uma visão de mundo generosa e humana, que cumpre, assim, o objetivo maior da literatura: o de assegurar ao homem a sua humanidade.
Relatos, acontecimentos, memórias, descobertas, no espaço que vai da infância aos dias de hoje, encontram, assim, sua melhor expressão na linguagem de aparência coloquial, que logo se transforma em carne do poema: versificada, sonora, ritmada, intensa, não raro dissonante, alcança seu melhor efeito pelo ritmo incerto e pelas rimas toantes. Sofisticada ou simples, a linguagem dos versos busca significados essenciais, como pode-se ler em coisas sobre nós que os livros de física ignoram.
A força encantatória desse poema, e de outros tantos, procede do erotismo refinado e intenso obtido pelo emparelhamento dos versos em que as palavras lunar-quente-solar-fluída-clara contrapõem seus significados aos de gravidade-reflexo-acústica. Aliás, como ocorre também com frequência, a presença da música informa a organização dos versos, sua extensão e alternância rítmica.
Pela delicadeza e profundidade, os poemas de Pedro Gonzaga suscitam no leitor a mais pura empatia. Poemas modernos, neles a dissonância estimula a leitura, frustrando a expectativa de um relato aparente pela inclusão de comparações, insights e metáforas. O poema inicial, o nome, deixa ler o tom entre melancólico e irônico que caracteriza o livro. Nele, a construção dos versos descendente, melodiosa e ritmada surpreende e tensiona o leitor, gerando o efeito de choque que Hugo Friedrich reconhece como objetivo da poesia contemporânea. Segundo o crítico, ela serve para fascinar pela dissonância, acordando e renovando a relação do homem com o seu tempo. Isso irá se repetir em muitos poemas, que subvertem a semântica e criam momentos de intensidade lírica.
Chama atenção do leitor o efeito poético transformador que ocorre, por exemplo, em ossos. Nele, um fato minúsculo, como uma drágea, uma pastilha ou o título do poema, transforma-se em metáfora. Ossos: e a esperança cintila quando a velha senhora exclama “é cálcio”, “levando o comprimido aos lábios”. Ternura e melancolia confundem-se, enquanto tempo e amor se impõem como temas onipresentes. O tempo e seu enfrentamento, quando o poeta revisita o passado e o expõe em imagens, feito os copos “relavados de extrato de tomate”; ou o belíssimo frank & ava, onde o poeta relê e humaniza, pela ironia, mitos do século 20. O amor e seu erotismo, pressentido ou epifânico, sempre à superfície da pele.
Dentre tantos e bons poemas, cada leitor irá sublinhar seus preferidos. Mas alguns deles, como a dançarina, com seu jogo erótico de luzes; 2015 e seu elenco de probabilidades; nos tempos do saxofone; e meu pai faz setenta anos certamente serão incluídos, eis que o confronto entre simplicidade temática e densidade poética torna-os inesquecíveis.