Por Paulo Rosa
Pediatra, psicanalista, autor de “Andar Térreo” (crônicas, 2019)
Poeta não dada a eufemismos, em Dia de Amar a Casa Mariana Ianelli radicalizou: não há um só. Nem para remédio. Melhor assim, de entrada o coração sangra e a alma se contorce porque a pele poética, ao caminhar, se arrasta pelo chão, vai se escalavrando, e daí não se afasta. Lindo e feio como a vida, como dizemos no Uruguai.
Sendo poeta, Ianelli gosta da crônica e há quase uma década ela faz anotações sobre tigres que, informa Ignacio Loyola Brandão, quem a lê aprende a saber de si. Nada pouco para tempos pandêmicos que te arrinconam: não há saída, ou se aprende de si ou se apreende de si. Pois Amar a Casa é fruto desse aperto.
“devo a esses e outros tigres da língua sentidos e sons que nunca antes havia experimentado”
Ianelli é, portanto, dada a tigres. Seus livros estão cheios: Ianelli avô, Aquino pai, Octavio Paz, Hilda Hilst, Neruda, Hooper, Rilke, Dostoiévski, Escher, João Cabral, Vinicius, Murilo, Quintana, Drummond, Marise Castro, Caetano, Chico, Frida, Modigliani, Artaud... Incontáveis felinos com quem aprendeu a degustar, diz, a “delícia da palavra”. Grato vê-la grata.
“gosto dos primeiros tempos de um artista, quando tudo nele é ainda nascente como no país da infância... gosto dessa infância dos caminhos...”
Afino-me com Ianelli sobre a busca sensível, felina, tateante, de passos nunca antes. Aquele instante em que por primeira vez se ajustam música e letra, explica Chico Buarque: é coisa celestial. Os primeiros momentos do primeiro Freud, farejando a escuras, sendo mais que todo-ouvidos, olhos para olhar, experimentar palavras e afetos e descobrir-se a si na presença de Elisabeth de R, uma paciente inaugural. Ali confessa:
“’ajudei-a ainda mais como amigo interessado’, palavras estonteantes para ouvidos pós-freudianos, em especial se afeitos a eufemismos.”
Mas Ianelli é, ainda, generosa:
“Esta é para os ariscos, tímidos, enrustidos, impopulares, lacônicos, ensombrecidos, bichos-do-mato... Esta é para os lentos, atentos, estranhos, reservados, esses tachados de esquisitos, que não se dão bem, não se abrem... para os ausentes, reticentes, atônitos, estatuados, reformados de guerra, cumulados de mortes, os que preferem não dizer, os que perderam a voz, os que só guardam... esses que falam com os olhos, quando falam. Os que ainda não entraram na música, mas esperam sua hora. Os que vão de leve para não revolver águas escuras...”
Ao olho clínico de Ianelli nenhum vericoeto del alma se escapa, e ela se propõe a diálogos multilaterais com essa penca de filhos da natureza. Fosse médica, seria uma aula de clínica – essa mais bela palavra – que revela o debruçar-se ao peculiar de cada um.
“eu falaria de coisas que não conheço só para aprofundar meu desconhecimento”
A poeta dá ênfase ao degustar o não saber próprio, algo decisivo para o conhecimento possível de si, do mundo. Caso de mãe que exerce maternidade a partir do olhar a filha e não do suposto-saber de mãe.
A poeta destapou assim o comunicado de Yolanda, sua filha-e-guia, mostrando que Yoyo agora tem nova fome, fome de amigos, portanto a mãe deve aquietar-se para que a filha possa ter mais paz ao partir. Como gestações e nascimentos infindos de mãe e filha, vida afora, mas que transcorra de jeito poético.
“como sobe um poema feito um cheiro de alecrim quando chove” ou “um copo de água de chuva e a alma do menino sente o gosto dos relâmpagos” (apud Tonino Guerra).
“será que toda vez que a gente expede um minúsculo carinho telepático o outro é levado por alguma sinapse amorosa a também pensar na gente?” “todo dia tem sua hora clandestina... estamos aqui e não estamos. Estamos aqui e em outra parte.” “...à própria sorte, a mente é esse gato sem raça definida... riscando o ar num louco emaranhado invisível...”
Sim, poeta, creio, as gentes, assim como os astros, têm elípticas atrações recíprocas, cujos trajetos se sucedem em proximidades e distâncias, como em amorosas sinapses do cosmo.
O livro vai para o homem que vê céu entre folhas secas de parreira.