Por Patricia Lima
Jornalista, mestre em Letras com dissertação sobre Simões Lopes Neto
Com a filha, a quem chamava simplesmente de Amor, ele brincava de esconder pela casa. Dela recebia o sagrado cafezinho de todos os dias enquanto trabalhava em textos sobre a escrivaninha. Para a esposa, pelos postais, mandava beijos endereçados ao apelido singelo de “mãezinha”. Ao deparar com a paisagem forjada pela natureza do Pampa, contemplava, silenciosamente, sentado sob um alpendre. Quando a família se reunia, tirava fotos e contava histórias. Quando amigos lhe pediam conselhos, não fazia questão de exibir cultura. Oferecia apenas palavras de simpatia e compreensão. Um sujeito bacana, enfim, que olhando assim poderia ser aquele nosso amigo, ou o conhecido gente boa da sua mãe. Ocorre que este, especificamente, sobre quem se revelou essas e outras várias informações íntimas e prosaicas, foi João Simões Lopes Neto, o grande escritor a quem costumamos chamar de regionalista, que cristalizou nos Contos Gauchescos e nas Lendas do Sul a voz autóctone do gaúcho do campo nas palavras carregadas de sotaque, dignidade e altivez de Blau Nunes.
Um livro recente joga luz sobre quem foi a individualidade por trás de uma das mais importantes obras da literatura brasileira. Eu Conheci João Simões Lopes Neto – Recordações de Contemporâneos do Escritor é a mais nova empreitada de Carlos Francisco Sica Diniz, que em 2003 publicou João Simões Lopes Neto – Uma Biografia. Pesquisador dedicado e constante, Diniz nunca para de buscar informações sobre seu ilustre conterrâneo. Graças ao seu trabalho, estudiosos e admiradores ganharam, por exemplo, a sede do Instituto João Simões Lopes Neto, no centro de Pelotas.
No começo dos anos 1990, descobriu, vasculhando documentos notariais, que um casarão do século 19 havia pertencido ao escritor. Ali Simões morou com a esposa, Dona Velha, entre 1897 a 1907. A descoberta ocorreu aos 45 do segundo tempo, quando o imóvel estava prestes a ser derrubado para tornar-se um prédio de apartamentos. Um esforço conjunto de lideranças conseguiu impedir a demolição, tombando o imóvel e declarando seu interesse cultural. Em 9 de março de 2006, dia do aniversário de Simões, as portas do instituto foram abertas à comunidade na casa em que ele viveu.
Esse episódio revela a obstinação do estudioso que nunca cansa de perseguir os vestígios da figura enigmática desse escritor que, além da obra maiúscula, deixou mais mistérios do que respostas sobre si mesmo. Foi com esse espírito de vasculhador que Sica Diniz organizou o novo livro, uma reunião de depoimentos sobre Simões deixados por gente que conviveu com ele. Como assinala o professor de Literatura Brasileira e um dos maiores especialistas na obra simoniana Luís Augusto Fischer, não é preciso conhecer a biografia do escritor para viver a experiência artística que ele oferece. A análise sobre a obra, porém, se enriquecem grandemente quando confrontadas com aspectos sobre a personalidade e as circunstâncias vividas por quem a produziu. “Se resistirmos, corretamente, à tentação da visão unilateral e determinista – que concebe a obra como uma fatalidade tendo em vista a vida do autor, do tipo “era um maluco, só podia ter feito o que fez” –, a biografia nos abre planos de significação de grande valia, para detalhar e aprofundar o conhecimento”, aponta Fischer no ensaio introdutório da edição.
Com essa possibilidade de ampliar a compreensão da obra de Simões, o biógrafo recolhe necrológicos, homenagens e lembranças de quem esteve lá e viu de perto o sujeito estrábico, tímido e espirituoso, de coração bondoso e temperamento ameno. Uma sobrinha conta que o tio teve lições de alemão para ajudá-la nos estudos. Um jornalista colega de redação chama a atenção para a rapidez com que escrevia. O marido de uma das tias revela pormenores da amizade do escritor com Simeão, negro nascido livre na Estância da Graça. Os dois colecionavam ovos de passarinho, faziam cavalgadas e davam leite a um cordeiro guaxo de estimação. A filha adotiva, Firmina, deixa registrado o carinho com que a tratava o “paizinho”.
O filho do primeiro editor relembra a desordem com que chegavam a seu pai os originais a serem publicados. Em anos de paciente garimpo em jornais e arquivos, Sica Diniz monta um mosaico do homem que foi João Simões Lopes Neto em seu dia a dia, suas relações, seu jeito de ser. Para quem já está fisgado pelo seu universo literário, essas informações adicionam ainda mais possibilidades de reflexão sobre a figura que deu vida e voz a Blau Nunes. Para quem ainda não encarou a jornada narrativa do velho e altivo gaúcho pelo Pampa, o livro de Sica Diniz oferece uma oportunidade de entrar nela por uma porta lateral, aberta por um cara legal, gentil, inteligente e original.