Mesmo que se possa questionar a pertinência do termo “regionalista”, às vezes mais confuso do que esclarecedor, não há dúvida de que João Simões Lopes Neto (1865 – 1916) é principalmente conhecido como o grande prosador que registrou e imaginou as coisas do campo em obras-primas como Contos Gauchescos e Lendas do Sul. Um lançamento, entretanto, resgata um segmento menos conhecido de sua produção: a dramaturgia – ambientada na zona urbana, assim como eram suas crônicas.
Publicado recentemente pelo Instituto Estadual do Livro (IEL) em parceria com a Zouk, Teatro [Século XIX] (IEL/Zouk, 480 páginas, R$ 70) é o primeiro de dois volumes que somarão as 14 peças do autor pelotense (uma delas, Nossos Filhos, é tradução de uma peça do uruguaio Florencio Sánchez). O segundo tomo, com a produção dramática do século 20, deverá ser lançado no primeiro semestre de 2018.
O esforço de pesquisa de João Luis Pereira Ourique e Luís Rubira, ambos professores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), é o mais abrangente de que se tem notícia sobre o teatro de Simões Lopes Neto. Resultou na publicação de textos nunca antes editados em formato de livro, como Mixórdia!.., Coió Júnior e A Fifina. Também integram o primeiro volume, relativo à produção do século 19, as peças O Boato, Os Bacharéis, O Bicho e A Viúva Pitorra, todas precedidas de ensaios críticos.
Um dos objetivos do trabalho é questionar pressupostos sobre a dramaturgia do autor, que foi considerada por alguns uma parte menos relevante de sua produção. Como explica Ourique, estão presentes no teatro simoniano críticas à sociedade da época, ao comportamento social e à burocracia da administração pública, muitas vezes por meio do recurso da comicidade. Sob o pseudônimo Serafim Bemol, Simões não procurava ocultar sua identidade, mas “identificar uma posição de produtor”, segundo Ourique.
Depois da publicação do segundo volume, os pesquisadores pretendem disponibilizar ao público – provavelmente em um site e em um CD – as imagens coletadas na pesquisa, incluindo os manuscritos originais.
Antes de Ourique e Rubira, o crítico teatral Cláudio Heemann, que atuou em Zero Hora, havia publicado em 1990 a pioneira antologia O Teatro de Simões Lopes Neto, também pelo IEL, contendo parte da obra dramática. O segundo volume planejado por Heemann, no entanto, jamais foi concretizado. Estas peças foram reproduzidas na Obra Completa organizada por Paulo Bentancur em 2003. Dois anos depois, foi edtada Os Bacharéis, comédia-opereta recuperada pelos pesquisadores Cláudia Antunes e Márcio de Souza que resultou em montagem dirigida por Elcio Rossini em Pelotas e Porto Alegre.
Entrevista: "Os leitores irão se surpreender quando tiverem contato com essa produção"
Leia a seguir, na íntegra, a entrevista concedida por e-mail pelo pesquisador João Luis Pereira Ourique, um dos organizadores do livro ao lado de Luís Rubira
O que a “face urbana” revela sobre a obra de Simões Lopes Neto?
Quando mencionamos "face urbana", não é algo gratuito ou para desviar a atenção acerca das suas obras mais conhecidas. Toda a sua literatura dramática é urbana, ambientada no espaço da cidade e discute questões de época importantes para compreendermos não somente a cidade de Pelotas, mas a ideia de uma identidade nacional perceptível a partir de suas relações culturais com o ambiente urbano das grandes cidades brasileiras.
É importante destacar que nosso trabalho não é algo definitivo – longe disso – e nem uma edição crítica no sentido mais científico do termo. Trata-se de uma obra que divulga o teatro de Simões Lopes com estudos críticos para que os leitores – tanto leigos quanto especialistas – possam encontrar aspectos a serem desenvolvidos, situações que possam problematizar e avançar a leitura do escritor pelotense para além daquela que já o definiu, ou seja, como escritor somente regionalista. Ao nos depararmos com o teatro percebemos que João Simões Lopes Neto é um escritor antes de ser um regionalista, sendo a sua obra regionalista (mesmo se constituindo como a mais importante) parte de sua produção.
Diversos temas estão presentes no teatro simoniano – questões como a crítica à sociedade da época, ao comportamento social, à burocracia da administração pública – mediados por uma linguagem que insere expressões, gírias e termos que auxiliam a entender melhor uma cidade que ainda permanece fechada no imaginário, salvo algumas imagens e registros apresentados de forma fragmentada. As peças oportunizam uma história para além da cena, ampliando no universo dos leitores o palco histórico e o contexto social que se descortina de maneira mais clara e não se preocupa em sustentar uma visão positiva a partir de um olhar cômico e crítico.
Como se pode avaliar a qualidade da dramaturgia do autor?
Esse trabalho é o ponto de partida e não de chegada. Acredito que o teatro de João Simões Lopes Neto se destaca e merece novas leituras para abordar melhor essa parte de sua produção. Os textos que antecedem cada peça apresentam uma primeira crítica que evidencia a importância dessa produção, não se restringindo ao nome do escrito pelotense, mas procurando refletir sobre a obra. Neste volume sobre o século 19 temos, por exemplo, a peça O Bicho que comparamos com um conto de Machado de Assis que abordou a mesma temática: da contravenção do jogo do bicho. A peça de Simões Lopes discutiu essa questão oito anos antes de Machado, o que sustenta tanto o seu olhar atento às questões do seu tempo. Temos, dessa forma, a certeza de que não estamos apenas cultuando o nome de João Simões Lopes Neto, mas considerando o dramaturgo. Tanto o meu olhar quanto o do professor Rubira (Luís Rubira, também organizador do livro) acabam se complementando e aprofundando aspectos não resolvidos, o que apenas salienta a necessidade de novas leituras e perspectivas.
O que percebemos, também, é que persiste uma resistência a considerar a literatura dramática de João Simões Lopes Neto, talvez porque exija um repensar acerca de leituras muito restritas e limitadas às suas obras-primas: os Contos Gauchescos e as Lendas do Sul. Quanto ao "mais bem-acabadas", podemos afirmar que todas apresentam um cuidado de quem conhecia a linguagem do teatro. Desde a sua primeira peça – O Boato –, a construção de personagens e situações se alicerça em todos os pontos necessários para que o espetáculo se realize, para que o teatro possa tomar a sua forma: da pena ao palco. Tal situação foi mencionada por Valter Sobreiro Júnior, que colaborou com esta edição e também alertou que a leitura do texto dramático não deve limitar a expressão da obra, havendo a necessidade de pensar para além daquela materialidade, procurando imaginar o espaço cênico. Nesse sentido, Serafim Bemol (pseudônimo de Simões Lopes Neto) conseguiu elaborar um conjunto de peças importantes e que darão muito material para discussão e debate não restritos ao meio acadêmico.
O projeto dos livros poderá despertar o interesse de diretores teatrais para levar as peças novamente aos palcos?
Esperamos que sim. Não nos atrevemos a afirmar, mas acreditamos que a leitura das peças fará com que profissionais e amadores do meio do teatro vejam as possibilidades cênicas em resgatar para o palco o que resgatamos para as páginas do livro. Essa expectativa se sustenta quando relembramos o lançamento de O Teatro de Simões Lopes Neto por Cláudio Heemann em 1990. A partir desse primeiro livro sobre o teatro simoniano, houve produções significativas e que talvez se ampliem pela divulgação e alcance que tanto a editora Zouk quanto o Instituto Estadual do Livro (IEL) tem oportunizado a este lançamento.
Por que Simões assinava suas peças com o pseudônimo Serafim Bemol?
João Simões Lopes Neto utilizou vários pseudônimos. Estes não serviram para ocultar sua identidade, mas para identificar uma posição de produtor. A imagem da música que o pseudônimo apresenta é mais uma ligação com a ideia do teatro, com a amplitude de artes que se inserem para que o espetáculo se concretize. A biografia do professor Francisco Sica Diniz já discutiu esses aspectos, mas podemos utilizar essa questão para intuir que se João Simões Lopes Neto hoje viesse a se apresentar como escritor – sem conhecer o reconhecimento que teve – iria se apresentar como dramaturgo, como Serafim Bemol.
Em que acervos foram redescobertas as peças de Simões Lopes Neto?
Além da produção de Cláudio Heemann, tivemos acesso aos manuscritos a partir de material disponível na Bibliotheca Pública Pelotense, no Instituto João Simões Lopes Neto e de vários pesquisadores, bibliófilos e colecionadores que, com uma inegável disponibilidade e generosidade, nos disponibilizaram material para que fosse possível trazer ao público essas peças. Destacamos aqui a colaboração do pesquisador Fausto Domingues, que nos confiou o manuscrito da peça Coió Júnior, que não estava disponível em nenhum local público.
Em que sentido as peças do século 20 se diferenciam em relação às do século 19? Elas evidenciam uma produção mais madura?
Estamos agora na fase de revisão e diagramação do volume referente ao século 20 e acreditamos que deverá ser lançado no primeiro semestre de 2018. Dependemos, obviamente, desse contato com a editora Zouk e também do apoio do IEL para materializarmos esse segundo volume. Tudo conspira a favor de que os prazos serão atendidos e estamos trabalhando para que não tenhamos outros problemas. O segundo volume, além de apresentar as peças escritas no século 20, também apresentará um capítulo de encerramento que nomeamos Vozes dos Bastidores, cujo intuito é apresentar o percurso das obras (as escolhas por determinada versão, comentários sobre os manuscritos, entre outras situações que envolvem a produção do texto) e também algumas imagens das produções de algumas das peças, tais como A Viúva Pitorra, Os Bacharéis e Amores e Facadas.
A primeira peça do século 20 (Jojô e Jajá) apresenta elementos do teatro do absurdo. Essa relação já está presente na obra de Heemann e em outros estudos que incluem, inclusive, uma relação com Qorpo-Santo. No entanto, essas reflexões ainda se apresentam de forma genérica. Temos um texto crítico que evidencia aspectos nos dois autores que legitimam essa reflexão e inserção. Com isso, há um desdobramento na dramaturgia de João Simões Lopes Neto ao mesmo tempo em que oscila em sua quantidade.
Lembramos que nas primeiras décadas do século 20 o escritor sofreu percalços em suas iniciativas como empreendedor, o que pode ter afetado sua dedicação na produção de mais textos no período. Escrever para o teatro também é articular visando a montagem da peça. É preciso recursos para tanto: de tempo, financeiro, etc; recursos de que João Simões Lopes Neto não dispunha da mesma forma que no período anterior. Mesmo assim há elementos interessantes nessas obras.
Apresentamos no segundo volume a tradução feita de uma peça do dramaturgo uruguaio Florencio Sánchez (Nuestros Hijos), que evidencia mais uma face do seu trabalho: a de tradutor. Não há uma resposta simples a essa questão quando pensamos uma obra "madura". O que ocorre é uma continuidade do seu trabalho como dramaturgo ao longo de toda a sua vida como escritor. Certamente os leitores irão se surpreender quando tiverem contato com essa produção.