Por Celso Gutfreind
Psicanalista e poeta, autor de “A Arte que se Baste” (Artes & Ecos), entre outros
Dizer que Ricardo Silvestrin é um poeta afirmado alcança pelo menos um duplo sentido. Um: o poeta segue ativo, 35 anos depois de sua estreia. Convenhamos que já é um feito neste mundo em que quase tudo o que respira conspira contra a poesia, segundo Paulo Leminski, uma das influências maiores de Silvestrin.
Outro sentido: o poeta ultrapassou o rio Mampituba e hoje é publicamente reconhecido por artistas nacionais do quilate de um Jorge Mautner e de um Antônio Cícero. Até com Chico Buarque a bola rolou. Ricardo e seus poemas pegavam direto a estrada deste país, antes da pandemia, e depois continuaram, pelas redes sociais. Outro feito, não menos raro.
Mas pelo menos uma das razões desse mundo conspirar tanto contra a poesia há de ter a ver com o risco que ela assume. Enfrentar o silêncio mortífero primordial, topar a música impressa do mundo, expressar o conteúdo de sentimentos ardentes, através de uma forma que precisa fugir o tempo inteiro do senso comum para alcançar as entranhas únicas de um encontro autor-leitor, não é mesmo para qualquer um.
Só as “antenas da raça”, de acordo com o Pound ou os dispostos a “pagar a pesada moeda”, de acordo com o Quintana. Que coragem, então, guardam aqueles que escrevem e leem um poema. Na prosa cotidiana, tendemos para a inércia, para a comodidade, para a zona de conforto. E a poesia não concede. Nem negocia. Ela já nasce revolucionária.
Por isso, 12 livros de poemas depois – há os infantis, o romance, os contos –, em Carta Aberta ao Demônio Ricardo Silvestrin assume risco maior ainda e faz um livro quase inteiro sobre a indignação com um país. O país dele. O nosso. E seus políticos negligentes, seus eleitores insanos, a desvalorização da vida entre a sua dolorida história e o aqui e agora, com a banalização da morte.
Quem escreve ou lê poesia conhece o perigo desse abismo para quem topa cantar o tempo presente – Drummond, revisitado por Silvestrin –, onde se cai facilmente; basta a metáfora não se agarrar no escorregadio de uma podre realidade. Ao lado de um Bertolt Brecht (no mundo) e de um Ferreira Gullar (no Brasil), há uma procissão de poetas bem intencionados, no entanto fracassados.
Silvestrin, com a sua técnica pessoal, lapidada por esforço e décadas, agarra a metáfora do diabo, entre outras tantas eficazes e expressivas, verdadeiros antídotos contra o demônio, com a força de dispensar o nome da(o) coisa(o). Agora a sua carta já não é uma carta. E a sua indignação já pode ser também a nossa, pois o desabafo justo de uma prosa transformou-se em poesia, essa “errata para a vida errada”. E diabo nenhum viverá mais do que ela.
As ilustrações do Leo Silvestrin não deixam por menos e trazem algo a mais, desejo sempre almejado no casamento da imagem com a palavra. Pai e filho já podem estar juntos, não na mansão surrupiada em Brasília, mas ao lado do Brecht, do Gullar. E do Maiakóvski.
O lançamento
Será em live às 19h desta segunda-feira (29/3), nas redes sociais da editora (facebook.com/libretoseditora e instagram.com/libretoseditora, além do canal no YouTube), com as participações do autor, de Léo Silvestrin e do poeta Alexandre Brito.