Por Elenor J. Schneider
Mestre em literatura, professor aposentado da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc)
Guimarães Rosa, respondendo a uma pergunta de seu entrevistador Günther Lorenz, disse que “quem cresce em um mundo que é literatura pura, bela, verdadeira, real, deve algum dia começar a escrever, se tiver uma centelha de talento para as letras”. Habituado a viver dentro da literatura e tendo talento, Rodrigo Breunig só poderia desaguar nesse universo de fazer literatura. E faz isso com domínio e maturidade em seu primeiro romance, A Última Noite das Bicicletas. Quando concluí a leitura, que fiz de forma intensa, porque a história me fascinou, escrevi que, quando se começa a ler um romance e não se quer parar, existe ali uma tentação que merece ser perseguida até o final.
Jornalista de formação, mestre em Letras, tradutor de autores de ponta (Bukowski, Poe, Jane Austen, Huxley, Agatha Christie, só para citar alguns), Breunig traz para dentro do seu romance um caldo de tudo o que vive ou viveu em sua trajetória pessoal e profissional. As cortinas se abrem com uma cena pungente. O protagonista e principal narrador – Lucas Bauman – encontra-se no cemitério onde acompanhou o sepultamento de seus pais, atropelados por alguém que fugiu sem prestar socorro. Um dos poucos remanescentes da família, tio Ivan o consola: “Meu guri, meu guri. Nós precisamos ser fortes! Não é justo. Como vai ser agora? No fim, tudo vai ficar bem. Tu vai ver”. Lucas autodeterminou a grande meta: encontrar o atropelador de seus pais.
Nesse momento, abre-se um grande parêntese em que é dado ao leitor percorrer com Lucas os seus decisivos momentos de formação e de escolhas. Aos 13 anos, ganha de presente uma bicicleta Monark cor de rosa, cuja cor era tão berrante que “poderia ser vista pelos astronautas e discos voadores do espaço sideral”. “Estava em promoção, depois a gente pinta”, fala o pai. Com ela, percorre todas as ruas de sua Santa Cruz do Sul, onde capta não apenas a paisagem, mas também as mais diferentes figuras humanas que habitam essa cidade. Andando de bicicleta, constrói um círculo de amizades, dessas que marcam a vida para sempre.
Na primeira noite das bicicletas, 20 amigos se reúnem e partem do centro da cidade em busca de um campo de golfe existente na periferia. Sorrateiramente, transpõem o muro baixo de pedras e começam suas aventuras. Ao mesmo tempo, refletem sobre o futuro, prestes que estavam a fazer vestibular. Dão-se conta de que logo deixariam suas casas, longe dos pais teriam sua liberdade, mas também sentem medo dos possíveis desafios que certamente iriam enfrentar. De repente, percebem que Pablo, o mais próximo de Lucas, está sumido do grupo. Reaparece trazido por um homem alto, gigante, acompanhado de dois comparsas. Tinha invadido a casa deles e o grupo todo leva uma lição de moral. Enfim, as aventuras no campo de golfe tomam ares de despedida de um tempo feliz.
Na grande intersecção que se faz entre o princípio e o final da história, pode-se acompanhar Lucas estudando Jornalismo na UFRGS, estagiando numa rádio em Porto Alegre, arrependendo-se de sua escolha profissional, vendo de perto algumas tragédias que marcaram o Rio Grande do Sul. Reais ou não, em nada ferem a verossimilhança, não perturbam ou confundem o leitor, a exemplo do que ocorre também nas alternadas temporalides presentes na narrativa.
No primeiro dia após o enterro, Lucas reencontra a casa, os objetos da história da mãe, os livros, os discos, tudo o que dava sentido à vida e agora restando o vazio. Obstinado pela busca do atropelador, sem nenhuma pista, não desiste da luta. Percorre as ruas da cidade, precisava ler nos olhos de alguém o assassino de seus pais. Um dia, viu um homem gigante, foi atrás dele até sua casa, mas não era a pessoa suspeita.
Recolhido ao presídio por não ter pago pensão à filha, um homem, reformador e vendedor de carros usados, confessa ao companheiro de cela que não suportava mais o remorso de ter atropelado um casal e ter fugido. “Se ninguém me perdoar, eu vou enlouquecer”, disse o homem alto, um gigante. Pediu segredo, mas o companheiro falou ao advogado, que comentou o caso com alguns amigos. Um desses contou ao tio Ivan, que passou a informação a Lucas. Solto, o homem voltou a sua casa, em Vera Cruz, onde começou a ser vigiado implacavelmente por Lucas. Daí para a frente, desenha-se um final neblinado, misterioso, que só confere qualidade à narrativa.
Na última noite das bicicletas, os amigos se encontrariam na AABB para a festa de passagem de ano de 1999. Lucas foi mais adiante, preferiu ir ao Country Club para, sozinho, ver os fogos no lugar mais deslumbrante do campo de golfe.