Apresentando suas vivências e seu olhar para duas mobilizações que eclodiram em Nova York, em 2020, a jornalista Candice Carvalho Feio lançou o livro-manifesto Asfixia (Fotô Editorial) na última terça-feira. A obra traz um relato pessoal e poético da pandemia e protestos antirracistas, que emergiram nos Estados Unidos após o assassinato de George Floyd asfixiado por um policial.
Com textos e fotografias de Candice, Asfixia traz a experiência da jornalista em meio a sua cobertura para os canais Globonews e TV Globo - ela atua a serviço do escritório da emissora em Nova York, onde vive há quase oito anos. Caetano Veloso, que escreve o prefácio, descreve a obra como "livro-relato-poesia (que) nos leva para mais perto da vivência emocional que talvez nos abra os caminhos da verdadeira Abolição".
Segundo a jornalista, a ideia de convidar Caetano partiu da lembrança de versos da música Haiti ("Pra ver do alto a fila de soldados quase todos pretos/ Dando porrada na nuca de malandros pretos"), que reproduz cenas que ela observou nos protestos.
— Caetano tem tudo a ver com o livro. Pela defesa que sempre fez pelas mobilizações populares, além de ter sido uma voz muito atuante na pandemia — destaca.
Candice ressalta que 80% da renda da venda dos livros será ser destinada para a Central Única das Favelas (Cufa):
— Espero que o lançamento do livro possa provocar alguma mobilização coletiva para doação, que as pessoas ajudem as comunidades no Brasil.
Como foi a construção de Asfixia? Que impulso te levou a produzir esse registro?
Acho que o primeiro impulso foi como jornalista. Eu estava no olho do furacão quando Nova York era o epicentro da pandemia. Todos os dias eu falava sobre números, fatos e dados. Mas naquela situação era muito difícil deixar o lado humano, deixar o meu lado como Candice cidadã. Uma pessoa que está ali sentindo todos os medos daquela situação desconhecida. Tinha meu lado não-jornalista tinha todas essas sensações: medo do desconhecido, preocupação com a família e os amigos, de pegar o vírus. O livro surgiu disso, de ter um registro pessoal, que eu pudesse colocar um pouco mais do que eu estava sentindo. Pensei em fotografar Nova York nesse isolamento, nessa situação. Quem sabe poderia fazer um livro desse momento. Mas eu não sou fotógrafa, era uma coisa muito despretensiosa. Comprei uma câmera e comecei a fotografar. O que acabou acontecendo depois, que acabou se tornando o tema principal do livro, foi que tivemos dois movimentos, duas mobilizações coletivas por mudanças, que geraram resultados. A importância da mobilização coletiva quando a gente quer atuar como agente de mudança. A primeira foi da população de Nova York, que entendeu que era importante ficar em casa, em isolamento, e respeitar o que as autoridades estavam falando no momento que as mortes por coivd-19 estavam lá em cima. Depois de dois ou três meses os números começaram a baixar.
Então, em junho houve o assassinato de George Floyd e despontaram aqueles atos que você descreve no livro como de insubmissão à morte. Como você avalia esse momento de ruptura? Os protestos, naquele momento, eram uma necessidade maior para parte da população mesmo numa pandemia?
Os protestos foram muito poderosos. Estar ali olhando a revolta dos manifestantes em relação à polícia. O sofrimento daqueles manifestantes. Ao mesmo tempo, a esperança de mudança a partir de um movimento de mobilização popular. Eu também decidi registrar aquilo. Eles diziam que viviam uma outra pandemia. Há 450 anos a gente vive essa pandemia nos Estados Unidos que é do racismo. Desde a escravidão, que, depois de seu fim, continuou de outras formas. As pessoas afirmavam que era urgente que saíssem para as ruas naquele momento. Elas saíram com todos os cuidados possíveis, embora seja impossível não aglomerar em um protesto. Grande maioria de máscara. Muitos voluntários entregando lenço umedecido, álcool gel ou óculos de natação para proteger os olhos. Não era um negacionismo. As pessoas entenderam que o que aconteceu com George Floyd era maior naquele momento, especialmente para a população negra.
Na sua avaliação, que legado esses protestos deixaram?
Foi pequeno dentro do contexto todo de racismo dentro dos Estados Unidos, mas importante. Umas da reinvindicações era que o orçamento da polícia de Nova York fosse diminuído, e esse dinheiro fosse revertido em projetos sociais em comunidades negras. Isso aconteceu.
No começo do livro, você relata aquele estranhamento de quando Nova York entrou em quarentena. Era um vazio asfixiante, como você descreve. Queria que você abrisse mais esse ponto: que impacto causava Nova York vazia?
A cidade vazia parecia ainda mais imponente. A sensação era de que Nova York saltava. Sem as pessoas na rua e aquela distração do barulho, da buzina, do metrô passando, das pessoas falando no celular, daquele caos que a cidade tem. Sem esses elementos, parecia que Nova York era muito mais imponente. Parecia que os prédios eram maiores, que as avenidas eram gigantes. Isso gerava uma angústia maior ainda. Era uma sensação de que estava faltando vida na cidade, ao mesmo que lidávamos com as notícias de mortes todos os dias. Parecia que a cidade pesava sobre a gente. Uma asfixia. Dava um medo ver uma cidade tão poderosa de joelhos para uma ameaça invisível.
Você descreve que do ponto de vista dos manifestantes, os policias negros eram menos confiáveis que os manifestantes brancos. Como funcionava essa relação? Qual era o papel dos brancos nos protestos?
Essa dinâmica é super complexa. Independente de ser branco ou negro, havia uma união muito forte de quem estava na manifestação. Todo mundo era bem vindo, independente de cor. Tinha uma revolta muito grande nos primeiros protestos dos manifestantes em relação à polícia. Os manifestantes negros olhavam para os policiais da mesma corva e ficavam ainda mais revoltados no sentido de "como vocês apoiam essa polícia racista, que há anos nega e isola as comunidades negras, e age com violência". A gente não está falando de policiais individuais aqui, mas sim da instituição polícia americana, que tem esse histórico inegável. Pelo fato do histórico da polícia americana, que se estende a brasileira também, de parecer que a vida negra tem menos importância. As abordagens policiais são diferentes entre negros e brancos. O combinado entre os manifestantes era de que sempre que houvesse um momento de tensão, os manifestantes brancos tomassem a frente, fizessem uma corrente. Eles entendiam que se a polícia tivesse que bater ou prender os manifestantes brancos, o tratamento seria diferente.
No prefácio, Caetano sublinha semelhanças entre Brasil e Estados Unidos tanto na maneira de lidar com a pandemia, quanto nas diferentes maneiras de não resolver o problema de formação colonial-escravista. Porém, no Brasil, a situação da pandemia se agrava, enquanto no Estados Unidos está mais estabilizada. Por aqui, parece que estamos voltando para março de 2020, só que pior. Nos Estados Unidos, como o país está chegando a um ano de pandemia?
Tudo mudou quando mudou o governo nos EUA. Quando Joe Biden assumiu, a mudança de rumo no país foi drástica. Donald Trump demonstrou descaso com vírus e com a vida das pessoas. Foi um presidente que não apresentou compaixão pelo povo americano, mas que promoveu aglomeração e fez discurso contra o uso de máscara. Nós ficávamos confusos no início, pois cada Estado adotava suas medidas. Quando Biden assumiu, governo federal e ciência alinharam um discurso único. As vacinas foram compradas durante o governo Trump foram chegando. Ao contrário do Bolsonaro, Trump nunca falou contra a vacina. Foi a única coisa positiva dele em relação ao vírus. Quando trocou o governo, foram compradas mais vacinas, a logística foi melhor organizada e a orientação ficou unificada. Com essa combinação resulta no que estamos vendo agora: dois milhões de pessoas estão sendo vacinadas por dia. O país está andando para frente, enquanto a sensação que tenho no Brasil é que estamos andando para trás.
Você já tinha experiência com a fotografia?
Era de hobby. De fotografar para rede social, como todo mundo faz (risos). Sempre gostei de registrar, de imagens, não é à toa que fui trabalhar na televisão. Sempre gostei da estética, sempre tive muito interesse pelas cores e por luz, mas sempre no campo do hobby. Nunca fiz curso de fotografia. Mas a fotografia naquele momento foi um meio diferente do que eu usava no meu trabalho, que era o vídeo jornalístico. Foi quase uma terapia sair fotografando. Estava isolada no meu apartamento. Era algo que eu precisava: se ficasse só no apartamento ou trabalhando, vendo números de covid o dia inteiro, vou enlouquecer. A fotografia virou uma meditação. Eu saia para a rua e ficava horas fotografando. Como não era fotógrafa, tirava mil fotos da mesma coisa (risos). Foi um exercício também descobrir a maneira de fazer o registro.