Estreia da semana de reabertura das salas de cinema em Porto Alegre, o documentário Atravessa a Vida entrou em cartaz nesta quinta-feira (14/1) no Espaço Itaú. O filme do carioca João Jardim acompanha alunos do 3º ano do Ensino Médio de uma escola pública do interior do Sergipe que se preparam para a prova do Enem, retratando a pressão e as angústias que os estudantes sentem com o exame e refletindo sobre temas urgentes – perspectivas para futuro, depressão, abandono do pai, entre outros.
Jardim, que volta ao universo estudantil que havia abordado em Pro Dia Nascer Feliz (2005), também tem no currículo documentários premiados como Janela da Alma (2001, codirigido com Walter Carvalho) e o indicado ao Oscar Lixo Extraordinário (2010, com Lucy Walker e Karen Harley), além da ficção Getúlio (2014) e programas como Liberdade de Gênero e Nelson Por Ele Mesmo. Nesta entrevista, o cineasta de 57 anos fala sobre o atual momento do cinema nacional e sobre as inquietações juvenis com as quais deparou, tendo ou não a ver com a experiência de fazer o Enem.
Como foi a concepção de Atravessa a Vida?
Após Pro Dia Nascer Feliz, eu quis fazer outro filme sobre o adolescente na escola. O documentário anterior abordava uma faixa etária um pouco mais jovem, entre 14 e 15 anos. Neste, pensei em retratar o 3º ano, o momento de sair da escola, o Enem, a possibilidade de entrar na universidade. A ideia foi evoluindo até esse formato de passar três meses em uma escola. Não foram três meses diretos; foram várias semanas intercaladas nesse período, em que a gente foi e voltou. Minha preocupação principal é o lado subjetivo, o que o jovem pensa nesse contexto. Há um potencial enorme nessa faixa etária, horizontes de abrindo. E como o país lida com isso, que perspectiva a gente está dando para as pessoas nessa faixa etária? Ainda: o quanto as questões emocionais influenciam muito a vida da gente nesse momento? A criação do filme foi uma mistura de várias inquietações como essas. Pesquisei várias escolas, mas concluí que seria melhor trabalhar com uma única, grande, pela balbúrdia que pode ter. E não queria trabalhar em uma grande cidade para evitar temas paralelos, como a questão da violência. Tampouco queria mostrar jovens sem nenhuma perspectiva, pois não acho que isso seja real no Brasil hoje – ao menos era assim antes da pandemia. O Enem (implementado em 1998) abriu a possibilidade de o jovem de baixa renda entrar na universidade, algo que era bem mais limitado anteriormente. Então, está diretamente ligado à possibilidade de melhoria de vida, o que mexe com as perspectivas desses jovens.
Que contexto era aquele em que você realizou Pro Dia Nascer Feliz e qual foi o contexto de Atravessa a Vida? São dois momentos diferentes da educação brasileira?
Acho que, quando o primeiro documentário foi filmado, em 2004, entrar na universidade pelo Enem não era uma perspectiva. Ao chegar aos 15 anos, a coisa era um pouco assustadora. O que eu vou fazer depois da escola? Agora já existe essa perspectiva, já se solidificou o Enem e também o Fies e o ProUni. Você teve, nos últimos 15 anos, políticas de inserção do jovem de baixa renda no Ensino Superior. Ainda falta muita coisa a ser feita, logicamente. Não há universidade o suficiente para dar conta de todo o mundo. Mas as universidades pelo menos se interiorizaram. Há universidades mais baratas, que os pais ou alunos de uma classe média com padrões do interior do Brasil conseguem pagar. O próprio celular e a popularização da internet trouxeram um jovem mais antenado com o que está acontecendo no mundo. Esse jovem tem mais informação do que aquele de 2004-05. Talvez isso provoque uma alienação, mas esse jovem está conectado ao celular em qualquer lugar do Brasil, mesmo com uma internet ruim ou precária...
Como você chegou ao Centro de Excelência Dr. Milton Dortas, que fica em Simão Dias, cidade de 40 mil habitantes no interior sergipano?
Na época em que comecei a pesquisar as escolas, falei com o Paulo Saldaña, que é um jornalista de educação da Folha de S.Paulo. Li uma matéria sobre essa escola, que ele escreveu. Com a ajuda dele, consultei um censo escolar. Queria uma escola grande de mil alunos de uma cidade pequena. Porém, há apenas entre 10 e 20 escolas grandes assim em municípios interioranos no Brasil que têm notas médias de aprovação de Enem entre 20% e 30%. A média de aprovação no Enem nas escolas públicas brasileiras é baixa. No caso de uma escola com mais de mil alunos, é mais difícil ainda achar uma que tenha uma média boa. Essa escola era uma exceção, algo impressionante em uma cidade de 40 mil habitantes. Ela também tem uma característica que está no filme, que é o fato do prédio ser todo aberto. Não tem corredor. As salas de aula dão todas para o pátio, e os alunos não ficam fechados dentro de um prédio. Isso, para o filme, ajudava muito. A ideia era fazer um filme todo na escola, mas ao mesmo tempo que não fosse claustrofóbico, porque escola não é prisão.
Como foi acompanhar esses alunos por três meses? Como eles lidaram com as câmeras?
Passamos sete semanas com eles, entre agosto e novembro de 2018. Foi um movimento de ir chegando perto, de ganhar a confiança deles, deixando acontecer um processo de sedução para irem se abrindo para o documentário. Logicamente, eles desconfiavam da gente no princípio. Teve muita conversa e explicação. Foi preciso muita paciência, mas deu muito prazer. Tinha muito medo de que não acontecesse, que ficasse na superficialidade. Quando se começa, as conversas são muito superficiais. E vem a dúvida: “Será que tem filme aqui? Será que de fato vai gerar conteúdo?”. Aos pouquinhos foi acontecendo.
Eu não queria mostrar jovens sem nenhuma perspectiva, pois não acho que isso seja real no Brasil hoje – ao menos era assim antes da pandemia. O Enem abriu a possibilidade de o jovem de baixa renda entrar na universidade, algo que era bem mais limitado anteriormente. Então, está diretamente ligado à possibilidade de melhoria de vida, o que mexe com as perspectivas desses jovens.
O filme traz episodicamente temas que permeiam a adolescência. Um deles é o sentimento de pressão para ser aprovado por uma universidade. Que efeitos essa pressão pode causar nos jovens?
É uma pressão muito grande, que acho difícil segurar. Sair da escola e perder a convivência com os amigos é impactante. Há também aqueles que não têm vontade nenhuma de ir para o Ensino Superior – o que não vejo problema. Há vários bons empregos que não precisam de graduação. Claro, o ideal é que todos tenham a melhor formação possível. Mas há outras perspectivas. De qualquer maneira, essa pressão é algo que faz parte do aprendizado. Uns se deprimem, outros sofrem com ansiedade, desenvolvem um sentimento de inferioridade, o que pode levar a algo ainda maior.
Há também as indecisões com as escolhas da vida adulta, o que é comum nessa fase. Havia alguns jovens indecisos entre os alunos que você acompanhou, não?
Sim. Na verdade, quase todos (risos). Eles até dizem o que gostariam de cursar, mas, quando a gente se aproxima, percebe que têm dúvidas, pois não entendem muito bem o que são aquelas profissões. Mas são dúvidas normais, dúvidas sobre que tipo de vida eles querem, e que pode acompanhá-los até o final da vida... Uma das coisas que sempre tentei colocar nos meus filmes é isso. A ideia de que não existe uma verdade absoluta, não existe um único caminho. A subjetividade de cada pessoa é muito rica. Estar atento o que cada pessoa tem, sente ou acredita, é sempre muito interessante.
Há problemas recorrentes entre os personagens do filme, incluindo falta de diálogo no ambiente familiar, ausência do pai... Você escolheu jogar luz nessa questão da falta da figura paterna deliberadamente ou o assunto acabou surgindo mais naturalmente nas filmagens?
Esse assunto nós percebemos nas entrevistas. Fomos perguntando como era a casa dos estudantes e isso foi aparecendo. No roteiro original, não havia as entrevistas. Mas, quando estávamos lá, resolvemos fazê-las para ver o que sairia. Dos 12 estudantes que fomos ouvir, nove falaram desse assunto sem precisarmos ter perguntado. Quem costuma segurar a onda nas famílias é a mulher, é a mãe. Imagino que isso aconteça de maneira recorrente por todo o Brasil. Essa ausência do pai é uma das dificuldades que os jovens enfrentam no estudo, porque se sentem desamparados. O que me parece que mudou nos últimos tempos é que eles conseguem verbalizar isso. Isso nos chamou a atenção: como eles falam bem sobre o tema, sem muitos receios.
A ausência do pai é uma das dificuldades que os jovens enfrentam no estudo, porque se sentem desamparados. O que me parece que mudou nos últimos tempos é que eles conseguem verbalizar isso. Isso nos chamou a atenção: como eles falam bem sobre o tema, sem muitos receios.
Um dos jovens (Ramon) fala sobre a ausência do pai e sobre o quanto a mãe é importante para ele. diz que as dificuldades serviram de combustível para ele se esforçar ainda mais nos estudos. e arremata: “A tristeza tem um lado bom, que é o aprendizado”.
Todos os depoimentos foram muito emocionantes. Estávamos fazendo o filme na mesma época das eleições de 2018. A escola era um local de votação. Ela teve que fechar brevemente nesse período para a eleição. Foi quando fizemos as entrevistas. Foi muito forte. Eram conversas de uma hora que vinham com uma carga emocional que a gente não esperava. Um tipo de depoimento sincero e sofrido, mas muito bem articulado. Foi difícil escolher só três para a edição final, até porque eu não queria fazer um filme com entrevistas.
A certa altura, uma professora leva a música Pais e Filhos, da Legião Urbana, para os alunos debaterem, e a conversa acaba sendo sobre suicídio, com Várias questões vindo à tona: familiares que negligenciam os sinais, automutilação, a incompreensão de uma mão diante do que a filha sente. Como foi adentrar nesse debate delicado?
A questão do suicídio é um assunto que as escolas tentam abordar quando é possível. É um debate muito importante. Você vê que a professora estava com a aula superpreparada. Ela sabia o que estava fazendo, uma coisa bem direcionada. Há campanhas como o Setembro Amarelo, com a intenção de prevenir situações como essa. Isso está latente na escola, constatamos isso. No filme, o assunto surgiu organicamente. Nós permanecíamos na escola várias horas e íamos observando, e deparando com isso. Quando esse assunto veio, conversamos com estudantes perguntando se ficariam tranquilos em expor suas histórias nesse sentido. Tudo o que está no filme é orgânico, simplesmente veio para nós. E aí lidamos com cada assunto conforme a demanda surgia. Nada foi plantado, “vamos falar de automutilação”. Fomo abertos para encontrar o que aparecesse.
Não havia tema pré-estabelecido?
Achei muito relevante que a polarização política não tenha aparecido. Como filmamos na época das eleições, achamos que apareceria. Obviamente, havia o debate e havia defensores dos dois polos políticos na escola. Mas não presenciamos nenhum desrespeito, nenhum tipo de intolerância. Não vimos um antagonismo mais forte. Até teve uma aula em que uma menina fala: “Sou preta, pobre, mulher, nordestina, se estou aqui, é porque pessoas morreram na ditadura militar. Como posso votar na ditadura?”. Ali eles estavam falando sobre o Bolsonaro, mas nem citaram o nome dele.
Em outro momento, chama a atenção que jovens se manifestam a favor da pena de morte. Também há quem diga ser contra aborto. Embora o debate naquela aula acabe virando, pareceu-me ali que estava clara uma forte desilusão. Você sentiu isso? Há uma tendência de desacreditar nas instituições, sim. Pareceu-me que há uma descrença na Justiça. E também de que o governo vá dar conta dos problemas. Acho que até por isso não havia polarização: há, sim, desilusão com as instituições. Mas não há falta de perspectivas, isso me pareceu bem claro.
A desilusão e também uma certa apatia parece maior nas aulas do turno da noite. Como eram essas turmas?
A educação à noite do Ensino Médio é muito difícil. Normalmente, o aluno trabalha durante o dia e vai ao colégio cansado. O professor também, pois já deu várias aulas ao longo do dia. Além disso, o espaço da escola é grande e a presença de alunos é menor no período noturno, o que dá uma sensação de vazio, de que alguma coisa não está adequada. Ao mesmo tempo, é muito importante haver o ensino noturno, pois muitos estudantes precisam trabalhar ou ajudar em casa.
A diretora Daniela Silva é um capítulo à parte. Ela vive sobrecarregada, atua como psicóloga e até como costureira. Pelo que você observou, o que é ser diretora em escola pública?
Muitas escolas acabam tendo essa figura do diretor-gestor. Para dar conta de tudo, a pessoa tem de se virar em mil. Precisa realmente fazer um pouco de tudo. Tem que ter esse lado afetivo, tem que ter esse lado organizacional, o lado de entender os conteúdos das aulas. E a direção precisa ser comprometida para a escola dar certo. Isso eu já tinha percebido em Pro Dia Nascer Feliz. Ou a direção atua como gestora, em todas essas pontas, ou a escola naufraga.
Como você vê a realização do Enem em meio à pandemia?
Creio que é importante que seja realizado. Com certeza há um risco, é preciso tomar cuidado. Mas não adiantar segui adiando, não vai fazer muita diferença, pois a crise sanitária segue. E, se não fizer, como se vai preencher as vagas que vão surgir? Há uma quantidade muito grande de pessoas que podem entrar no Ensino Superior para você abrir mão dessas vagas. Além disso, tudo está funcionando: bar, supermercado, praia. Se a educação não pode, por que o resto pode? É claro, tem a questão da desigualdade: pessoas de escolas privadas ou com acesso melhor à internet têm melhores condições de aprendizado. Mas você tem o sistema de cotas, que vai continuar permitindo que pessoas de outros grupos entrem na universidade. É preciso encontrar soluções.
O governo Bolsonaro imobilizou completamente a Ancine. Há 700 filmes parados. Ainda mais com a pandemia, ninguém está conseguindo filmar. Tudo o que vinha acontecendo, com nosso cinema sendo reconhecido, parou de uma maneira assustadora. Há uma política de destruição de coisas que levaram muitos anos para serem construídas.
O cinema brasileiro vive entre tensões com o governo federal, seja por suspensões de editais ou desmanches que devem diminuir bastante a produção nos próximos anos. Como você enxerga o futuro nesse cenário?
Estamos num momento muito difícil com a Agência Nacional do Cinema (Ancine) paralisada. Não gosto de politizar, mas o governo Bolsonaro imobilizou completamente a Ancine. Parou a produção. Há 700 filmes parados. Ainda mais com a pandemia, ninguém está conseguindo filmar. Tudo o que vinha acontecendo, com nosso cinema sendo reconhecido, parou de uma maneira assustadora. Há uma política de destruição de coisas que levaram muitos anos para serem construídas.
Por outro lado, Democracia em Vertigem concorreu ao Oscar ano passado, e neste ano Babenco foi selecionado para representar o Brasil na seletiva do Oscar de melhor filme estrangeiro. são dois documentários...
Sou uma pessoa otimista: espero que os serviços de streaming tenham a sensibilidade de encomendar documentários. Creio que as pessoas estão assistindo cada vez mais aos documentários. O futuro desse tipo de filme, para mim, é o streaming.
Quando Atravessa a Vida chega ao streaming?
Em fevereiro, no Globoplay.
Como é lançar um filme nesse contexto de pandemia?
Não saberia te responder. Eu, pelo menos, estou com muita vontade de ir ao cinema livremente de novo. Acho que, quando acabar a pandemia, irei muito ao cinema. Não aguento mais ficar vendo filme em casa. Quero a experiência coletiva. Não imagino que as pessoas vão seguir sempre em casa. O ser humano é feito para viver de maneira intensa. As pessoas querem a emoção, a experiência que as salas de cinema propiciam. Até aquela coisa de se desligar em um cinema. É uma experiência tão gostosa. Você senta ali e entra em outro mundo.