Por João Vicente Ribas
Jornalista, professor de Comunicação na UPF, apresentador da Rádio UPF
Quando se toma nas mãos e se observa a capa de No Faro das Migalhas, percebe-se profundidade e brilho que não emergem da sua reprodução virtualizada em pixels. Impossível expressar em palavras a ilusão de enxergar uma imagem tridimensional através daquela floresta enevoada, que aguça o sentido ótico e anuncia o que vem depois. Como escreve na apresentação o curador Gaudêncio Fidelis, o livro é um “turbilhão de imagens em colisão com os sentidos”. Todos eles. A começar pelo olfato, evocado no título.
Neste que é seu segundo livro de poesia, Márcia Barbosa dá vazão à urgência de figurar os tempos que vivemos. Alguns de seus poemas são quase crônicas. Neles, é possível encontrar ecos das notícias de corpos estendidos no chão, seja o de mais uma mulher morta a facadas ou o de mais um negro sufocado. Assim, o poder escapista do maravilhamento estético da poesia não nos descola do real. Mesmo embrenhados em sensações, não contamos com a possibilidade de nos afastarmos da responsabilidade, acionada por contundentes críticas aos desvarios, absurdos e crimes cometidos à luz do dia no Brasil.
Por isso, No Faro das Migalhas não traz conforto, não satisfaz o leitor que tenha o desejo íntimo de permanecer no limbo da isenção. É poesia de jogo completo, ataque e defesa. Sem medo de se posicionar e alimentar inimigos. E sem meias palavras, pois é uma poesia endereçada aos convertidos. Assim como os fiéis procuram no pregador um espelho, os leitores de poesia já são cúmplices, já estão conectados por laços de sensibilidade e pelo desejo de iluminar a realidade quando ela lhes parece violenta ou opaca e sem lastro.
A instrumentalização da fé é um dos alvos de sua crítica elegante e afiada, e a ela contrapõe mitologias sacras e pagãs. Além disso, não faltam menções à pandemia que nos forçou a uma desmaterialização conectada. Outra Vez o Fim do Mundo sem uma arca a que possa recorrer. Ainda sim, em meio à distopia, essa poesia oferece esperança, para além da floresta enevoada, valorizando o cotidiano em que floresce o humano. Em 63 poemas, divididos em duas partes, o volume também aborda as memórias, a arte, o amor. Busca um respiro de beleza: “Logo que o inimigo for neutralizado/ há que deitar fora as vestes impermeáveis/ abandonar o abrigo/ redescobrir a tosse, o espirro, o suor, as células/ tentar a materialização” (Materialização).
No comentário da orelha, o pesquisador Paulo Kralik chama atenção para esta poesia que surge no meio da devastação e “transforma o transe em literatura”. Logo, No Faro das Migalhas também é alento, canto e armadura para enfrentar o presente. É um intervalo, um recreio, para se apegar à corporificação poética de uma bicicleta, um origami, uma ventana ou uma varanda.
A densidade e a melodia percebidas na poesia de Márcia Barbosa são tributárias de sua trajetória. Natural de Quaraí/RS (1963), formou-se doutora em Teoria da Literatura e foi professora da Universidade de Passo Fundo (UPF). Dedicou boa parte de sua vida ao ensino e à pesquisa literária, em particular ao estudo da poesia. Em 2016, aventurou-se no universo das canções, ao escrever as letras para melodias do compositor Raul Boeira, que estão registradas no disco Cada Qual com Seu Espanto. Na ambiência sonora diversa da MPB, as palavras lançadas ao mundo pela poeta já impeliam o ouvinte a se posicionar contra o estupor, ainda em um mundo menos caótico que o de hoje, tendência que segue em seu primeiro livro de poesia, Duas Fomes (2017). Agora, em seu segundo livro, edifica um lugar para a preservação de nossa condição humana, onde podemos nos sentir supervivos.
Um poema de "No Faro das Migalhas"
Gota a Gota
O planeta afogado em cifras
mortes aos milhões chegam com o jornal
e algumas, avulsas, individuais
às vezes íntimas
num telefonema
inundam nossos olhos
flagelam nossos dias.
As cinzas distribuídas no varejo
com nome, digital, fisionomia
são o obituário incontornável
ostensivo
que atrasa o almoço
suspende a rotina
tornando-a entrecortada
eivada de soluços
inativa.
As mortes somadas
expostas no atacado
entortam o quadro, deslocam as figuras
mas em ações habituais
cenas domésticas
programas paroquiais
a agonia em parte se dispersa
diluída na água que lava a louça
ocupa as mãos e a pia
enxaguando as horas
assim recompostas
assim reconduzidas aos trilhos
alheias e frias.
A rotina resiste às mortes coaguladas em números
gráficos e estatísticas congelam a incessante hemorragia.
As mortes vertidas gota a gota é que se destacam da tormenta
liberam o sangue estancado e rompem as comportas,
distribuídas no varejo
elas inundam a pia, as casas, os dias
as retinas.