Por Éder da Silveira
Doutor em História pela UFRGS, pós-doutor pela USP, professor do Departamento de Educação e Humanidades da UFCSPA, em Porto Alegre
No início do século 20, Budapeste vivia uma época de ouro de sua vida intelectual. Os cafés, que sobressaiam em suas principais avenidas, atraíam artistas e pensadores. A capital da Hungria, para muitos, disputava uma hegemonia cultural e artística com Viena e Paris. Reformas no ensino público colocaram as escolas húngaras entre as melhores da Europa. Para dar apenas um número, entre 1875 e 1905 nasceram, na Hungria, cinco futuros ganhadores do Prêmio Nobel.
Como Ana Cecília Impellizieri Martins, autora de O Homem que Aprendeu o Brasil – A Vida de Paulo Rónai, logra demonstrar, esse ambiente estimulante, de franca abertura às humanidades, recebeu de braços abertos o filho do livreiro Miksá Rónai, nascido Rónai Pál em 1907.
Aluno aplicado, especialmente dedicado ao estudo do latim e da história da literatura, ele constrói uma trajetória intelectual que deveria levá-lo, após o doutorado sobre a obra da juventude de Honoré de Balzac, concluído em 1931, a uma promissora carreira como professor universitário e tradutor.
A vida do jovem docente, que já se tornava conhecido pelas traduções que vinha publicando em revistas literárias, corria bem. No entanto, ao longo da década de 1930, a sua trajetória, como a de milhões de europeus, passará por profundas transformações. Uma importante fatia dos habitantes do continente começava a voltar os seus olhos com temor para a Alemanha. A comunidade judaica húngara não era indiferente ao avanço do antissemitismo e das perseguições que tiveram a nação vizinha como vetor.
A ascensão do nazismo provocou, para além de todas as mortes, seja na guerra, seja nos campos de concentração, um dos maiores êxodos de intelectuais, artistas e literatos de que temos notícia em toda a história. Quando Rónai percebeu que ele e sua família corriam riscos, passou a buscar um lugar para se exilar e reconstruir sua vida. Chegou a se corresponder com instituições no Uruguai, no Chile, na Austrália e até mesmo na Islândia. Seu destino, como sabemos, acabaria sendo o Brasil, cuja literatura ele havia recém descoberto.
Em 1937, por meio de uma tradução para o francês, Rónai toma conhecimento de um autor chamado Machado de Assis e de seu de seu romance Dom Casmurro. Como anotará muitos anos depois, uma “literatura que tinha romancista daquele porte não podia deixar de interessar-me”. Entre 1937 e 1938, Rónai se dedicou ao estudo do português, vertendo, em 1939, uma seleção de poemas brasileiros para o húngaro. Essa publicação pioneira de autores brasileiros para a língua magiar acabaria por ser a porta de entrada de Paulo Rónai para o Brasil. Depois de uma série de contratempos e dificuldades, dignas de um thriller, consegue chegar ao país, sozinho e com pouco mais do que alguns nomes anotados em uma caderneta, em 1941.
A aportar no Rio de Janeiro, Rónai passa a travar duas batalhas. Por um lado, procura tecer uma rede de contatos que o ajudem a ingressar no meio literário e editorial brasileiro; por outro, trabalha sem medida para trazer sua família para o Brasil e salvá-la da guerra. Em seus primeiros meses no país, conhecerá amigos que o acompanharão por toda a vida. Carlos Drummond de Andrade, Aurélio Buarque de Hollanda e Cecília Meirelles. Anos mais tarde, trouxe a sua família para o Brasil. Teve êxito em ambas as frentes.
Rónai foi responsável, como demonstrou a autora de sua recém-publicada biografia, por uma contribuição à cultura brasileira difícil de mesurar. Bastariam dois dos seus projetos para que o seu nome estivesse gravado em nossa cultura. O primeiro deles, Mar de Histórias, antologia do conto universal, distribuída ao longo de 10 volumes que levaram cerca de 40 anos para serem publicados, realizado em parceria com Aurélio Buarque de Hollanda.
O segundo, batizado pela editora de “operação Balzac”, uniu a paixão de Rónai pelo autor de Ilusões Perdidas ao caráter visionário dos editores da Editora Globo, da família Bertaso.
Rónai assumiu a tarefa de organizar a publicação integral da A Comédia Humana, de Honoré de Balzac, sendo responsável pela coordenação de uma equipe de tradutores. Ele revisou cada uma das traduções, as uniformizou e redigiu notas e apresentações para os 89 romances. Como destacou Ana Cecília Impellizieri Martins, “a tarefa se prolongou por 15 anos, deu origem a 17 alentados volumes, em um total de 12 mil páginas e 7 mil notas de rodapé”.
Com a publicação de O Homem que Aprendeu o Brasil – A Vida de Paulo Rónai, a autora ajuda a retribuir aquilo que Rónai legou à cultura brasileira, contando a sua trajetória. Narrar as histórias de homens como Paulo Rónai, Otto Maria Carpeaux e Herbert Caro é uma belo modo de agradecer por tudo o que nos legaram. O outro é impedirmos que tudo aquilo que está na origem de suas vindas, da Europa para o Brasil, se repita.